sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Semana dos Contos - A Cartomante

 
"A Cartomante"


O conto “A Cartomante”, publicado originalmente na Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro), em 1884, só posteriormente foi incluído no livro Várias histórias, no qual apresenta 16 contos, sendo alguns deles considerados obras-primas do gênero.
A obra pertence à fase de maturidade do autor, ou seja, nela são expressas as ideias realistas do momento, somadas ao tom pessimista, à ironia e forte crítica à sociedade de então, características marcantes em Machado de Assis.

Resumo da obra

O conto apresenta de forma bem marcada as três partes fundamentais da narrativa:

Introdução

Embora a história já se inicie durante o relacionamento adúltero entre Rita e Camilo, o narrador, após alguns parágrafos, apresenta em flashback o início dessa relação, quem são os personagens envolvidos, como se conheceram etc.


Ao final desse flashback o narrador nos conta que Camilo recebera uma carta anônima que afirmava que a aventura dos amantes já era conhecida por todos.

Camilo decide, então, rarear suas visitas à casa de Vilela. Essa decisão é ignorada por Rita que, insegura, passa a frequentar uma cartomante em busca de respostas. Essa cartomante, por fim, acaba por restituir-lhe a confiança (início da narrativa).

Desenvolvimento

Camilo ainda recebe mais duas ou três cartas anônimas. Rita assegura-lhe que deveriam ser de algum pretendente enciumado, mas ficará alerta se alguma carta daquele tipo fosse endereçada à sua casa. Passado um tempo, Camilo recebe um bilhete curto e imperativo de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.”

Pressente um drama: o marido descobrira tudo e o caso seria de morte. Assustado, com medo, dirige-se à casa de Vilela. Porém, durante o trajeto, seu tílburi fica parado bem em frente à casa da cartomante.

Depois de muito hesitar, por estar inseguro e ansioso, Camilo decide consultá-la. A cartomante assegura-lhe que nada de mal acontecerá aos amantes, pois o “terceiro” a tudo ignora. Camilo, confiante e tranquilo, parte para a casa de Vilela.

Desfecho

Ao entrar na casa de Vilela, encontra o amigo com “as feições descompostas” e, assombrado, vê Rita, morta e ensanguentada. Em seguida, recebe dois tiros de revólver e cai morto ao chão.

Gênero do texto e forma de expressão literária

Gênero: narrativo, visto que narra os acontecimentos da vida dos personagens durante um determinado período, incluindo representações do mundo cotidiano mais individualizado e pessoal.

Subgênero: conto, por se tratar de uma narrativa mais curta, centrada em um episódio específico da vida dos personagens.

Forma de expressão literária: prosa, pois o texto foi escrito sem divisões rítmicas intencionais e sem grandes preocupações com métrica, rimas, aliterações e outros elementos sonoros.

Tema e ideias transmitidas

Embora a temática do adultério seja bem clara no texto, em uma leitura mais atenta percebe-se que o conto prioriza a questão da contradição humana, por meio do embate razão X emoção, ceticismo X credulidade.

Desde o início, o narrador ressalta o perfil cético, racional e prático do personagem Camilo em relação “às coisas do além”, quando de suas críticas à inocência de Rita ao acreditar em cartas, cartomantes e destino.

Porém, ao se deparar com uma situação que o fragiliza, causando-lhe medo e insegurança, o antes convicto “homem sério” não só busca amparo e serenidade nas cartas, como acaba por acreditar piamente em seu veredicto, partindo de peito aberto para os dois tiros que o esperavam.

O narrador, mesmo apresentando Camilo como homem que desdenha a credulidade de Rita, ao longo do conto lança vários comentários que podem antecipar os acontecimentos. No entanto, tais passagens, por serem muito sutis, talvez passem despercebidas pela maioria dos leitores, mas demonstram o espírito fraco de Camilo.


“Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público.”

“Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos.

Nem experiência, nem intuição.”

ASSIS, Machado de. “A cartomante”. In: Várias histórias.


A falta de experiência e a negação de sua intuição acabam por traçar-lhe o fim trágico.

A grande jogada do texto se dá na medida em que a citação de Shakespeare em Hamlet dá o tom da narrativa, pois não só a inicia, como retoma ao texto por duas vezes (na fala de Rita e na memória de Camilo) e justifica o desfecho.

Afinal, quais seriam essas coisas que existem entre o céu e a terra que nem nossa filosofia pode sonhar? A contradição humana? A credulidade no invisível? A racionalidade que cega? As grandes paixões? O inesperado das situações?

Nem Shakespeare ousaria responder…

Análise da obra

O conto é interessante, principalmente, por apresentar um anticlímax, ou seja, o desenrolar da narrativa aponta para um determinado desfecho, mas somos surpreendidos pelo oposto da situação anunciada. Muito desse efeito é produzido por um perspicaz narrador onisciente, que manipula a narrativa, os personagens e o leitor.

Mesmo se tratando de uma narrativa curta, o texto apresenta quase todas as marcas estilísticas machadianas: a metalinguagem, a intertextualidade, a paródia, o humor cáustico e permanente, a ironia sutil e a personificação.

O recurso das digressões, tão presente em seus romances, é aqui ignorado em razão da concisão do texto.

A partir de uma citação shakespeariana, o autor inicia o conto utilizando o recurso da intertextualidade: ‘‘Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Mas esse recurso configura-se uma armadilha para o leitor, pois, à primeira vista, parece se referir somente à fala ingênua de Rita: “Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo”. No entanto, ao final, o que está em jogo é o comportamento imprevisível do próprio Camilo que, com medo e já desesperado, procura a cartomante, negando todo seu ceticismo e, ao sair, crédulo, feliz e despreocupado, encaminha-se para a morte.

Quando numa obra somos levados a refletir, junto com o narrador, sobre a própria escritura da linguagem literária, estamos em plena atividade metalinguística. A partir desse recurso passamos da posição de leitor passivo para a de leitor incluso, ou seja, aquele com o qual o narrador estabelece diálogos sobre o seu fazer literário, afastando-se nesses momentos de aspectos exclusivamente do enredo: ‘‘Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela”.

Nesse momento de “conversa com o leitor” o narrador, além de comentar que ainda não havia narrado o passado dos três personagens envolvidos, alerta-o que agora irá fazê-lo e convida-o para acompanhá-lo.

A partir daí a narração, que se mostrava cronológica e linear, será interrompida por um flashback que ocupará sete parágrafos, iniciando-se após o trecho “Vamos a ela” até o final do parágrafo “Um dia porém, recebeu Camilo…”.

O uso da personificação (atribuição de sentimentos, ações humanas a seres inanimados ou a conceitos abstratos) no relato enriquece o texto e aproxima o leitor da cena, uma vez que esta concretização do abstrato garante uma compreensão “visível” do que se quer demonstrar. Nas seguintes passagens o uso da personificação é recorrente:


“… era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos…”

“A casa olhava para ele.”

“… o mistério empolgava-o com as unhas de ferro”

“… onde a água e o céu dão um abraço infinito.”

ASSIS, Machado de. “A cartomante”. In: Várias histórias.

Conclusão

Machado de Assis, no conto A cartomante, constrói um narrador que se coloca de maneira superior em relação aos personagens e, ao mesmo tempo, filtra a visão que se possa ter dos mesmos, ou seja, manipula tanto os personagens como os leitores.

O mestre Machado interessa-se pelas contradições humanas e pela sondagem dos sentimentos e ideias íntimas de seus personagens. Sendo assim, os acontecimentos e o cenário só terão relevância, caso provoquem reações psicológicas e comportamentais nos personagens envolvidos na trama.
Fonte: Cola da Web

"A Cartomante" também está disponível em HQ.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Semana dos Contos - Venha Ver o Pôr do Sol

"Venha Ver o Pôr do Sol"


As histórias de Lygia Fagundes Telles, seus contos e seus romances, são exercícios para uma autocompreensão humana (especialmente feminina). Os seus personagens, numa busca por estabelecer laços, encontram obstáculos sociais, familiares e amorosos que se oferecem ao leitor como seres incompletos e até mesmo angustiados pela imobilidade de agir.

Talvez um dos seus mais famosos contos é “Venha ver o Pôr do Sol”, publicado em Antes do baile verde, em 1970. O jogo que se estabelece no diálogo entre os dois personagens (Ricardo e Raquel), emoldurado pela voz do narrador objetivo que apenas descreve as ações, vai fornecendo não somente os antecedentes e conflitos entre eles, mas também dirigindo para o final surpreendente.

Esse é um conto altamente dialogado, e sabe-se como era a relação de Ricardo e Raquel através das suas palavras. Como ele a amava, como ela o trocou por um homem mais rico, como ele, vendo que a tinha perdido, elaborou o plano de trancá-la onde a morte se isolou. A voz do narrador, por sua vez, “guia” o olhar do leitor, e mostra as crianças que brincam e cantam (no início e no final do conto, como se fosse a distância e o regresso à vida humana), os túmulos e abandono do cemitério, o desdém de Raquel e o rancor de Ricardo (nas insinuações das rugas que surgem nos momentos de tensão do rapaz).

É interessante, após a primeira leitura e descobrindo-se, por fim, as reais intenções do plano de Ricardo, reler o conto, para notar as pistas que estão ali, desde o princípio. 

Enfim, Lygia Fagundes Telles é escritora a se descobrir por novos leitores, para que eles mesmos possam se descobrir.
Fonte: Um Professor Lê

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Semana dos Contos - Sagarana

“Sagarana” – Resumo da obra de Guimarães Rosa
Entenda o enredo da obra



Sagarana é a primeira obra de Guimarães Rosa a sair em livro, traz nove contos, nos quais o universo do sertão, com seus vaqueiros e jagunços, surge no estilo marcante que o escritor iria aprofundar em textos posteriores.

Elementos estruturais e resumos
Os narradores de “Sagarana” têm o estilo marcante criado por Guimarães Rosa, cuja principal característica é a oralidade. No entanto, esse traço ainda não está tão acentuado como em obras posteriores, como “Grande Sertão: Veredas” e “Primeiras Estórias”, entre outras. Considerando que a oralidade acentuada é um dos principais obstáculos para a leitura de Guimarães Rosa, o livro “Sagarana” é uma excelente opção para iniciar-se na obra do autor.

Em relação ao foco narrativo, com exceção dos contos “Minha Gente” e “São Marcos” – que são narrados em primeira pessoa –, os demais possuem narradores em terceira pessoa. Quanto ao tempo e ao espaço de “Sagarana”, pouco há o que ser dito. Sobre o primeiro elemento, vale destacar a linearidade da narrativa, que se desenvolve na maior parte sob o tempo psicológico dos personagens.

O espaço é quase sempre Minas Gerais. Mais especificamente, o interior do estado. Vale uma atenção maior para o nome dos povoados e vilarejos dos contos. Os estados de Goiás e do Rio de Janeiro são mencionados no livro, mas têm pouca relevância na narrativa.

“O burrinho pedrês”
Enredo: Sete-de-Ouros é um burrinho decrépito que já fora bom e útil para seus vários donos. Esquecido na fazenda do Major Saulo, tem o azar de ser avistado numa travessia pelo dono da fazenda, que o escala para ajudar no transporte do gado. Na travessia do Córrego da Fome, todos os cavalos e vaqueiros morrem, exceto dois: Francolim e Badu; este montado e aquele agarrado ao rabo do Burrinho Sete-de-Ouros.
Principais personagens: Sete-de- Ouros (burrinho pedrês), Major Saulo, Francolim e Badu.

“A volta do marido pródigo”
Enredo: Lalino é um típico malandro que não aprecia o trabalho, apenas a boa vida. Abandona o serviço na estrada de ferro e vai para o Rio de Janeiro, largando sua mulher, Maria Rita, a Ritinha, na região. No retorno, a encontra casada com o espanhol Ramiro. Torna-se cabo eleitoral do Major Anacleto, que, graças a ele, ganha a eleição. Laio, como também é conhecido, reconcilia-se com Maria Rita no fim do conto.
Principais personagens: Lalino Salathiel, Maria Rita, Ramiro e Major Anacleto.

“Sarapalha”
Enredo: a história de dois primos, Ribeiro e Argemiro, contagiados pela malária que se espalhou no vau de Sarapalha. Os dois estão solitários na região, já que parte da população morrera e os demais fugiram, entre os quais a mulher de Ribeiro, Luísa. Argemiro, percebendo a iminência da morte e desejando ter a consciência tranqüila, confessa o interesse pela esposa do primo. Ribeiro reage à confissão de forma agressiva e expulsa Argemiro de suas terras, sem nenhuma complacência.
Principais personagens: Primo Ribeiro e Primo Argemiro.

“Duelo”
Enredo: Turíbio flagra sua mulher, Silvana, com o ex-militar Cassiano Gomes. Ao procurar vingar sua honra, confunde-se e acaba matando o irmão de Cassiano Gomes. Turíbio foge para o sertão e é perseguido pelo ex-militar. Nessa disputa, os dois alternam os papéis de caça e de caçador. Cassiano adoece e, antes de morrer, ajuda um capiau chamado Vinte-e-um, que passava por dificuldades financeiras. Turíbio volta para casa e é surpreendido por Vinte-e-um, que o executa para vingar seu benfeitor.
Principais personagens: Turíbio Todo, Cassiano Gomes, Silvana e Vinte-e-um.

“Minha gente”
Enredo: Emílio visita a fazenda de seu tio, candidato às eleições, e apaixona-se por sua prima Maria Irma, mas não é correspondido. Ela se interessa por Ramiro, noivo de outra moça. Emílio finge-se enamorado de outra mulher. O plano falha, mas a prima apresenta-lhe sua futura esposa, Armanda. Maria Irma casa-se com Ramiro Gouveia.
Principais personagens: Emílio (narrador), Maria Irma, Ramiro Gouveia e Armanda.

“São Marcos”
Enredo: José, narrador-personagem, é supersticioso, mas mesmo assim zomba dos feiticeiros do Calango-Frito, em especial de João Mangolô. Izé, como é conhecido o protagonista, recita por zombaria a oração de São Marcos para Aurísio Manquitola e é duramente repreendido por banalizar uma prece tão poderosa.
Certo dia, caminhando no mato, Izé fica subitamente cego e passa a se orientar por cheiros e ruídos. Perdido e desesperado, recita a oração de São Marcos. Guiando-se pela audição e pelo olfato, descobre o caminho certo: a cafua de João Mangolô. Lá, irado, tenta estrangular o feiticeiro e, ao retomar a visão, percebe que o negro havia colocado uma venda nos olhos de um retrato seu para vingar-se das constantes zombarias.
Principais personagens: José, ou Izé (narrador), Aurísio Manquitola e João Mangolô.

“Corpo fechado”
Enredo: Manuel Fulô, falastrão que se faz de valente, é dono de uma mula cobiçada pelo feiticeiro Antonico das Pedras-Águas. Este, por sua vez, tem uma sela cobiçada por Manuel. Enquanto o protagonista se gaba de pretensas valentias, o verdadeiro valentão Targino aparece e anuncia que dormirá com sua noiva. Desesperado, Manuel recebe a visita do feiticeiro, que promete fechar-lhe o corpo em troca da mula. Após o trato, há o duelo entre os dois personagens; o feitiço parece funcionar e Manuel vence a porfia.
Principais personagens: Manuel Fulô, feiticeiro Antonico das PedrasÁguas e Targino.

“Conversa de bois”
Enredo: conta a viagem de um carro de bois que leva uma carga de rapadura e um defunto. Vai à frente Tiãozinho, o guia, chorando a morte do pai, ali transportado, e Didico. Tiãozinho, que se tornara dependente de Soronho, angustiava- se com este por dois motivos: ele maltratava os bois e havia desfrutado os amores de sua mãe durante a doença do pai.
Paralelamente, o boi Brilhante conta aos outros a história do boi Rodapião, que morrera por ter aprendido a pensar como os homens. Há uma indignação entre os animais em relação aos maus-tratos que os humanos lhes infligem. Agenor, para exibir a Tiãozinho seus talentos como carreiro, obriga, de forma cruel, os bois a superar a ladeira onde a carroça de João Bala havia tombado. Superado o obstáculo, os bois aproveitam-se do cochilo de Agenor e puxam bruscamente a carroça, matando seu algoz.
Principais personagens: Tiãozinho, Didico, Agenor, Soronho e o boi Brilhante.

“A hora e a vez de Augusto Matraga”
Enredo: Augusto Estêves manda e desmanda no pequeno povoado em que vive. Pródigo, com a morte do pai perde todos os seus bens. Certo dia, Quim Recadeiro dá-lhe dois recados que alterarão sua vida: perdera os capangas para seu inimigo, o Major Consilva, e a mulher e a filha, que fugiram com Ovídio Moura.
Augusto Estêves vai sozinho à propriedade do major para tomar satisfação com seus ex-capangas. O Major Consilva ordena que Nhô Augusto seja marcado a ferro e depois morto. Ele é espancado à exaustão; depois os homens esquentam o ferro usado para marcar o gado do major e queimam o seu glúteo. Augusto, desesperado, salta de um despenhadeiro.
Quase morto, o protagonista é encontrado por um casal de pretos, que cuida dele e chama um padre para seu alívio espiritual. Nhô Augusto decide que sua vida de facínora chegara ao fim. Recuperado, foge com os pretos para a única propriedade que lhe restara, no Tombador. Trabalha de sol a sol para os habitantes e para o casal que o salvara, em retribuição a tudo que fizeram por ele. Leva uma vida de privações e árduo trabalho, com a finalidade de purgar seus pecados e, assim, ir para o céu.
Um dia, aparece na cidade o bando de Joãozinho Bem-Bem, o mais temido jagunço do sertão. Nhô Augusto e o famigerado jagunço tornam-se amigos à primeira vista e, depois da breve estada, despedem-se com pesar. Com o tempo, Nhô Augusto resolve sair do Tombador, pressentindo a chegada da “sua hora e vez”. Encontra-se por acaso com Joãozinho Bem-Bem, que está prestes a executar uma família, como forma de vingança. Nhô Augusto pede a Joãozinho Bem-Bem que não cumpra a execução. O jagunço encara essa atitude de Nhô Augusto como uma afronta e os dois travam o duelo final, no qual ambos morrem.



“Sagarana” – Análise da obra

Nem mocinhos, nem bandidos
O livro de estreia de João Guimarães Rosa foi publicado em sua versão final em 1946. Os contos começaram a ser escritos em 1937, e até o lançamento definitivo, a obra foi reduzida de 500 para 300 páginas, composta de nove contos / novelas. Nesse processo, o autor filtrou o que havia de melhor no texto, utilizando em seu peculiar processo de invenção de palavras o hibridismo – que consiste na formação de palavras pela junção de radicais de línguas diferentes. O título do livro é composto dessa forma. “Saga”, termo de origem germânica, quer dizer “canto heróico” e é utilizado para definir narrativas históricas ou lendárias; “rana”, termo de origem indígena, significa “espécie de” ou “semelhante a”.

Entre os contos que escreve em “Sagarana”, merece destaque especial “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”. Tido pela crítica como um dos mais importantes contos de nossa literatura, condensa os vários temas presentes no livro: o sertão, o povo, a jagunçagem, a religiosidade e o amor.

Por meio de vários elementos simbólicos, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” trata de um tema muito presente na obra de Guimarães Rosa: o maniqueísmo, ou seja, a visão dualista de mundo que o separa em dois polos opostos: o bem e o mal. Na literatura, essa visão tende a criar tipos opostos de personagens: o mocinho e o bandido; a virgem casta e pura e a prostituta devassa; o trabalhador pai de família e o bandido; e assim por diante. Nesse conto, a transformação por que passa Augusto Matraga entre o começo e o fim da história não permite seu enquadramento em um polo único.

No início do conto, Nhô Augusto é uma figura típica do universo sertanejo: um coronel que dá ordens em todos na região, abusando de seu poder e humilhando a população. Nesse ponto da narrativa, o narrador dá ao nome completo de Nhô Augusto um significado interessante. Augusto pode ser lido como um adjetivo, que significa majestoso, imponente. Basta lembrar que era o título dado aos imperadores romanos. Estêves, por outro lado, pode ser entendido como a conjugação do verbo “estar” no passado. Assim, o narrador anuncia desde o começo, pelo nome do personagem, que sua condição de soberano no sertão está fadada ao insucesso. O nome Matraga, uma espécie de apelido de Nhô Augusto, tem claramente uma conotação pejorativa (má + traga, de tragar ou do verbo trazer).

Uma análise do nome Joãozinho Bem-Bem é ainda mais reveladora. Joãzinho, um nome comum, e no diminutivo, parece indicar um lado afetivo, quase infantil, do personagem que é um jagunço. O advérbio Bem confirma o caráter inofensivo do primeiro nome, e sua repetição (Bem-Bem) gera uma sonoridade cara ao povo sertanejo e cristão. Esse efeito é a onomatopéia do badalo do sino de uma igreja. Tantas referências cristãs e benévolas que o nome Joãzinho Bem-Bem sugere, no entanto, parecem absolutamente opostas ao caráter do personagem.

Na narrativa, diferentemente de Nhô Augusto, não se sabe nada sobre a vida de Joãozinho Bem-Bem antes que ele se encontre com o protagonista. Porém, é possível supor que o nome e, sobretudo, o apelido revelem algo da origem do personagem. Assim, pode-se interpretar que os primeiros anos do jagunço foram marcados por uma bondade intensa, da mesma intensidade que seu nome sugere.

A maldade de Joãozinho Bem-Bem foi incorporada no decorrer de sua vida. Outro dado que comprova essa análise é o fato de ele “não ter fraco por mulheres”. Um homem que não aprecia a companhia feminina na cultura sertaneja não goza de grande prestígio social. Apenas um tipo de homem no sertão tem o direito de não cobiçar as mulheres sem ser tratado como efeminado: um padre. Assim como Nhô Augusto nasce mau e se torna bom, Seu Joãozinho Bem-Bem parece tornar-se mau depois de ter sido bom.

Essa transformação radical dos personagens tem fim com a chegada da “hora e vez” de Matraga, o confronto final com Joãozinho Bem- Bem. Nesse duelo fatal, os conceitos de bem e mal caem por terra, pois o “bom” Augusto Estêves e o “mau” Joãozinho Bem-Bem envolvem-se em uma ação que supera o maniqueísmo: o primeiro faz o bem à família cometendo assassinato, enquanto o segundo, ao assassinar o protagonista, dá-lhe sua redenção.

Comentário do professor
O prof. Marcílio Gomes Júnior, da Oficina do Estudante, comenta inicialmente o título da obra, “Sagarana”. Com ele, Guimarães Rosa antecipa que irá criar histórias que são quase lendas, quase míticas, mobilizando diferentes mitos que serão aplicados ao sertão de Minas Gerais. Compreende-se a partir daí também o universo mítico que terão as narrativas de “Sagarana”.

As narrativas do livro são pequenas obras-primas sobre a vida e costumes de personagens insólitas do sertão de Minas. O prof. Marcílio acha importante frisar que essas não são personagens comuns, urbanas, mas sim personagens que protagonizam experiências que transcendem o senso comum. Por essa razão, abrem-se portas para o universo mítico/metafísico, tema recorrente na obra do autor.

Sendo o que se pode chamar de um “escritor filosófico”, Guimarães irá fazer no plano temático dessas narrativas uma investigação da relação do homem com o mundo a seu redor, trabalhando os “temas universais”, tais como bem e mal, vida e morte, a efemeridade e outros. Por conta dessa investigação é que o livro tem uma simbologia muito forte, simbologia esta carregada de mitologias, símbolos e mitos de culturas ancestrais, o que exige do leitor, conforme lembra o prof. Marcílio, uma cultura vasta. Além disso, a forma com que Guimarães trabalha estes temas universais em suas histórias garante que, embora se passem no sertão e tenham características locais/regionais, elas ganhem sentido universal, sendo o que se costuma chamar em literatura de “regionalismo universalizante”.

Além de exigir um horizonte cultural abrangente, o professor lembra outro aspecto que dificulta a leitura de Guimarães: o próprio aspecto formal, estilístico e linguístico do texto. As narrativas do autor tendem a estar carregadas de neologismos e brincadeiras linguísticas com palavras de idiomas diversos, além de nomes de lugares, personagens, da flora e fauna local, que não são familiares ao leitor. Porém, é através dessa rica linguagem empregada por Guimarães, que ele irá reinventar miticamente as formas diversas de uma natureza por si só já exuberante do sertão de Minas Gerais.

Por fim, pensando na prova do vestibular, o prof. Marcílio acha interessante eleger algumas linhas de sustentação da obra, que são: a linguagem e os neologismos empregados pelo autor; o tratamento filosófico existencialista das narrativas no embate “homem versus universo”; o aspecto lúdico e mítico das histórias, onde Guimarães descobre diante dos olhos do leitor uma Minas Gerais que “não existe”, mas que é reconstruída de uma forma mágica e diferente daquilo que a gente vê.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Semana Machado de Assis - Dom Casmurro

“Dom Casmurro” – Análise da obra


Publicado pela primeira vez em 1899, “Dom Casmurro” é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu.

Muitas leituras possíveis
Há uma discussão em torno da obra que alimenta os espíritos mais inflamados: Capitu traiu ou não seu marido Bento Santiago, o Bentinho?
O romance, entretanto, presta-se a muitas leituras, e é interessante ver como a recepção ao livro se modificou com o passar do tempo. Quando foi lançado, era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.
Machado de Assis, autor sutil e de penetração aguda em questões sociais, arma o problema e testa seu leitor. É impressionante como isso vale ainda hoje, mais de um século depois do lançamento do livro. O romance é a história de um homem de posses que ama uma moça pobre e esperta e se casa com ela. Em sua velhice, ele escreve um romance de memórias para compreender melhor a vida.
Capitu, até a metade do livro, é quem dá as cartas na relação. É inteligente, tem iniciativa, procura articular maneiras de livrá-lo do seminário etc. Trata-se de uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal do século XIX. Nesse sentido, Capitu representa no livro duas categorias sociais marginalizadas no Brasil oitocentista: os pobres e as mulheres. A personagem acabará por “perturbar” a família abastada, ao casar-se com o homem rico.
Percebe-se, por isso, o peso do possível adultério em suas costas. Não se trata apenas de uma questão conjugal entre iguais, mas de uma condenação de classe. Bentinho utiliza o arbítrio da palavra para culpar sua esposa. Mas é ele quem narra os acontecimentos e, por isso, pode manipular os fatos da maneira que melhor lhe convém. Não se sabe até que ponto os fatos relatados correspondem ao que ocorreu, ou são uma interpretação feita pelo personagem, que, além de tudo, escreve que não tem boa memória.
Nesse sentido, a questão central do livro não é o adultério, e sim como Machado introduz na literatura brasileira o problema das classes e, ainda, de forma inovadora, a questão da mulher. Dom Casmurro coloca no centro de sua temática a menina que não se deixa comandar e, em virtude disso, perturba a ordem vigente naquele ambiente social estreito e conservador.

Paródia
Uma das formas mais clássicas que assume o humor e a ironia de Machado de Assis é a paródia. Uma paródia seria uma imitação cômica de um outro texto literário (pode ser também de uma música, filme, estilo, filosofia, etc.) já consagrado pela tradição. Em “Dom Casmurro”, temos três grandes paródias:

1) “Ilíada” de Homero: no capítulo 125, “Uma comparação”, Bentinho é obrigado a fazer um discurso em honra do suposto amante de sua mulher. Em Ilíada, o rei de Tróia, Príamo, teve que beijar a mão de Aquiles, assassino de seu filho Heitor.

2) “Otelo”, Shakespeare: a vida de Bentinho é sempre narrada com o mesmo tom trágico de uma ópera. Sua maior aproximação é com a peça Otelo, devido ao tema do ciúme e traição presente nas duas obras.

3) O mito de Abraão e Isaac: no Velho Testamento, Deus pede que Abraão sacrifique seu filho Isaac em seu nome. Porém, na hora em que Abraão ia imolar seu próprio filho, o Anjo do Senhor aparece impedindo e um carneiro é oferecido em lugar de Isaac. Em “Dom Casmurro”, a mãe de Bentinho promete seu filho a Deus (ele seria padre) antes mesmo de o conceber. Porém, Bentinho se apaixona por Capitu e eles lutam para ficarem juntos. O amor de Capitu consegue anular a promessa feita pela mãe dele e assim os dois podem se casar.

Narrador
O narrador é Bento Santiago, transformado já no velho Dom Casmurro. O foco narrativo é, portanto, em primeira pessoa e toda a narrativa é uma lembrança do personagem sobre sua vida, desde os tempos de criança, quando ainda era chamado de Bentinho. Porém, trata-se de um narrador problemático: primeiro porque o narrador é um homem emotivamente arrasado e instável; segundo porque ele narra fatos que não conhece bem, podendo ser tudo fruto de sua imaginação.

Tempo
O tempo da narrativa é psicológico, e não cronológico. Esse recurso é chamado impressionismo, porque o narrador se detém nas experiências que marcaram sua subjetividade. Seria usada pelo escritor francês Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido. A falibilidade da memória surge como fator de complexidade, uma vez que uma lembrança só pode ser acessada de um momento presente.
Os acontecimentos, então, passam pelo filtro da subjetividade presente. É por isso que a descrição que o narrador faz de Capitu, como uma pessoa volúvel e sensual, deve ser posta em dúvida pelo leitor. O sentimento de ciúme exacerbado de Bento pode ter desvirtuado a figura da personagem.

Comentário do professor
A profa. Aparecida Augusta Barbosa, do Cursinho do XI, lembra que “Dom Casmurro” é uma obra publicada na segunda metade do século XIX, período de desenvolvimento do cientificismo, que procura resultados exatos para explicar o mundo. Assim, há uma proposta artística de desnudar o real e desvendar os contrastes do íntimo, tentando explicá-los com os métodos científicos. Além disso, dentro de um contexto histórico trata-se de um período repleto de mudanças sócio-políticas e intelectuais, tais como a abolição da escravatura (1888), a Proclamação da República (1889), a entrada de imigrantes no país, e a modernização do Brasil com a dinamização da vida social e cultural, principalmente no Rio de Janeiro, sede do governo na época. Assim, afirma a prof. Augusta, era um momento propício para as artes absorverem as novas ideias vindas da Europa, tais como o liberalismo, o socialismo e as teorias cientificistas.
Dentro desse contexto histórico-cultural é que precisa-se pensar a obra de Machado de Assis. “Dom Casmurro” é uma obra narrada em primeira pessoa por um homem já velho e solitário, que está tentando “atar das duas pontas da vida” (infância e velhice). O tom do romance, que é construído em flashback, é de uma pessoa desiludida e amargurada, e sua visão dos fatos narradas é totalmente subjetiva e unilateral. Por conta disso, o livro adquire diversas leituras possíveis e permanece-se com a dúvida sobre o adultério de Capitu, afirma a profa. Augusta.
Além disso, a linguagem utilizada por Machado de Assis é marcadamente acadêmica e bem cuidada, sendo clássica e regida pelas normas de correção gramatical estabelecidas. Entretanto, há o registro em alguns pontos de aspectos típicos da língua utilizada pela personagem e registros mais informais e informais da língua portuguesa. Assim, a linguagem usada pelas personagens e o nível social dos protagonistas pode ser uma questão abordada pelos vestibulares, finaliza a profa. Augusta.
Fonte: Guia do Estudante


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Semana Machado de Assis - Quincas Borba

Quincas Borba




Quincas Borba é um romance de Machado que dialoga com Memória Póstumas de Brás Cubas, posterior à morte do autor do Humanitismo e com as desventuras de seu sucessor, Pedro Rubião. A história é a concretização da filosofia apresentada, refletindo o contexto histórico em que se encontravam.

Principais personagens de Quincas Borba

  • Quincas Borba: Era um intelectual que vivia em Barbacena (MG). Apaixonado pela irmã de Rubião, a moça morreu jovem. Borbas já estava no Rio desenvolvendo e propagando sua filosofia, o Humanitismo, retratado no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ao morrer, não tinha herdeiros, apenas seu amigo Rubião e seu cão.
  • Quincas Borba (cachorro): O cão de Borbas recebeu o mesmo nome e, assim como Rubião, era o fiel escudeiro de Borbas. Era um cachorro de estatura média, pêlos cor de chumbo e malhado com preto, muito precioso para Quincas.
  • Pedro Rubião: Era professor primário e tornou-se enfermeiro de Quincas Borba além de discípulo do Humanitismo. Era o mais ingênuo de todos que haviam ao seu redor e, quando Borbas morreu, a herança inteira e o cachorro ficaram para ele.
  • Sofia Palha: Mulher de Cristiano Palha, era também a musa de Rubião. É descrita como uma jovem e belíssima senhora, que encantava a todos os homens.
  • Cristiano Palha: Também chamado de “capitalista” por se envolver em práticas liberais de mercado, era também interesseiro e oportunista. Fazia de tudo para formar fortuna e via em Rubião uma oportunidade para enriquecer, aproveitando-se de sua inocência.

Enredo inicial

A história é narrada em torno da vida de Pedro Rubião de Alvarenga. Ele era um ex-professor primário que se tornou enfermeiro do filósofo Quincas Borba. Com a proximidade, tornou-se também fiel discípulo da filosofia inventada por Borbas, o Humanitismo.

Quincas havia falecido de loucura no Rio de Janeiro, na casa de Cubas. Toda essa história da jornada de Borba e sua morte foram narradas no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. Após a morte, a fortuna foi herdada por Rubião, o único companheiro humano inseparável de Quincas.

Rubião morava em Barbacena, interior de Minas Gerais, e era o homem mais ingênuo de todos que haviam ao seu redor. Além de herdar integralmente a herança (móveis, casa, investimento, etc), herdou também o cachorro, chamado Quincas Borba.

De uma hora para a outra ficou muito rico e decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. Na estação, acabou conhecendo o casal Palha: Cristiano e Sofia. O casal aparentou ser muito amigável e se comprometeram a apresentar-lhe à corte e auxiliá-lo para que ninguém o enganasse.

Desenvolvimento


O casal Palha só fez isso porque, na verdade, queria aproveitar de sua inocência e administrar a herança recebida. Com o tempo, o interesse de Rubião por Sofia foi inevitável. Sofia notou a paixonite e resolveu aproveitar-se disso para envolver Pedro Rubião nos seus planos financeiros.

Acreditando que era correspondido, Rubião declarou-se à Sofia em um baile e ela logo em seguida foi comentar com o marido sobre a ousadia de Pedro. Cristiano tenta acalmar a esposa dizendo que estava devendo muito dinheiro a Rubião e não podiam romper agora. Sugeriu que ela continuasse insinuando para que eles pudessem explorar mais.

Rubião ficou frustrado com o impacto que causou em Sofia e decidiu sair do Rio. Contudo, Cristiano e Camanho, político que também se aproveitava de Rubião, insistiram que ele continuasse na cidade. Pedro foi facilmente convencido e permaneceu no Rio de Janeiro.

Rubião e Cristiano tornaram-se sócios de uma importadora chamada Palha & Cia. Com o tempo, o capitalista passou a ter controle total sobre a administração dos bens. A condição de vida do casal melhora e Rubião continua no círculos de amizade. Contudo, notou que outro homem, chamado Carlos, também cortejava Sofia.

Louco de ciúmes por causa de Carlos e de raiva por Sofia não querer fazer dele seu amante, Pedro grita com ela insinuando que ela era adúltera. Sofia era muito perspicaz e consegue contornar a situaçãocasando Carlos com sua prima.

Desfecho

Diante de mais confusão arranjadaCristiano decide romper com a sociedade que tinha com Pedro. Alegava que precisava desligar-se da empresa para que conseguisse assumir cargos maiores no sistema financeiro. Na verdade, ele já tinha conseguido o que queria e precisava afastar Sofia de Rubião.

Pedro Rubião já estava insano, louco de desejo, e insiste em visitar Sofia. Ela estava de saída, entrando numa carruagem e ele resolveu entrar de supetão. Quando as cortinas se baixaram, Pedro declarou-se mais uma vez. Já delirando, acreditava ser o Imperador Napoleão III e queria que Sofia fosse sua amante.

Sofia percebeu a demência de Pedro e a notícia se espalhou pela cidade. Seus delírios aumentavam na mesma medida em que seu patrimônio diminuía. Alguns conhecidos insistiram que o casal Palha assumisse a responsabilidade de cuidar do doente.

Assim feito, transferiram-no para uma casa simples e depois internaram-no em um hospício. Contudo, Rubião fugiu acompanhado do cão e retornou à Barbacena. Não havia ninguém para os abrigar e eles dormiram na rua como mendigos. No dia seguinte Rubião morre na miséria e na loucura.

Análise de Quincas Borba


Contexto Histórico

A segunda metade do século XIX é um momento de profundas transformações tecnológicas e sociais. Acreditava-se poder alcançar a verdade (o que é objetivo e concretopor meio dos recursos da ciência, do Positivismo, do Determinismo, do Evolucionismo. Não havia confiança em crenças, sentimentos ou convenções sociais.

Esse momento cético refletiu fortemente na literatura, e nesse contexto surge o Realismo. Machado de Assis ficou famoso como representante do Realismo brasileiro, pois a racionalidade, a crítica e análise dos comportamentos são bem evidentes em suas obras.

Porém, Machado foi além visto que questionava até mesmo os fundamentos do Realismo. Filosofava sobre esse espírito realista e as tendência passadas, e mesmo em terceira pessoa, expressou alguns desses pensamentos e críticas no Humanitismo de Quincas.

Estrutura, Linguagem

Primeiro é necessário compreender que o narrador de 3° pessoa é alguém que está fora da narrativa, não participa como personagem. Como narra toda a história, é dito onisciente. Contudo, o narrador de 3° pessoa não é a mesma coisa que o escritor.

O escritor é simplesmente quem escreve e pode escolher outro ser, ou ninguém, para ser o narrador. Contudo, nesta obra especificamente, Machado de Assis se põe como narrador, configurando um narrador/escritor.

A passagem a seguir quebra a objetividade do narrador de 3ª pessoa e mostra essa confluência. Pode-se dizer até que essa obra tem um tom a menos de formalidade que a sua antecessora, mesmo sem deixar de lado o estilo de Machado:

“Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia. Aqui o tens agora, em Barbacena”.

As narrativas de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Quincas encontram-se no início do capítulo IV, como se fora uma continuação. Entretanto, as histórias dos livros são completamente diferentes e tratam de pessoas diferentes. O elo entre os romances é apenas o Humanitismo.

Intertextualização e Filosofia

Segundo o Humanitismo de Quincas Borba, a vida é um campo de batalha onde só os mais fortes sobrevivem e que fracos e ingênuos são manipulados e aniquilados pelos superiores e espertos.

Levava isso tão à sério e considerava tão natural que afirmou:

“Nunca há morte. Há encontro de duas expansões, ou expansão de duas formas”

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas explica sua filosofia com uma frase:

“Ao vencedor, as batatas”

Essa frase veio de uma exemplificação concreta de sua filosofia, entenda:

“Supões-se em um capo de duas tribos famintas. As batatas apenas chegavam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrerão de inanição.

A paz, neste caso, é a destruição; a guerra, é a esperança. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí, a alegria da vitória, os hinos, as aclamações. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se. Ao vencido, o ódio ou compaixão…..Ao vencedor, as batatas !”

Análise final da obra

Diante de todas essas informaçõe prévias, podemos concluir que Quincas Borbas é a concretização da tese do Humanitismo, pois a trama passa em torno das relações sociais e demonstra que os que nasceram para ser fracos (Rubião) sempre serão dominados e explorados pelos espertos (Casal Palha).

A falta de escrúpulos do casal Palha nada mais é que o comportamento de várias outras personagens da vida real e do próprio livro, como o político. São paródias satíricas da crença do romantismo na sinceridade e virtudes humanas.

Demonstra Cristiano como todo falso amigo é e Sofia como as mulheres que sempre usaram as armas da sedução para seu objetivos. Além disso, a temática da traição sempre presente nas obras do autor é insinuada no interesse que Sofia manifesta pelos homens que a cortejavam.

De forma geral, denuncia uma sociedade improdutiva e parasitáriadissimulada e cheia de máscaras. Explicita o fetiche pelos bens e o jogo de aparências exerce grande influência e a demonstração de poder é até maior que o poder em si.

O Humanitas é o ser como é na realidade, simplesmente um aproveitador das oportunidades para sua sobrevivência. Rubião, por sua vez, é o anti-Humanitas, porque nada na sua vida foi conquistado, com a fortuna que caiu em seus braços. Sendo fraco, foi assolado, algo perfeitamente plausível.

Além do mais, a loucura gradativa já havia afetado Quincas e foi causa da morte de ambos. Ela é a confirmação do destino de quem acreditou excessivamente na aparência. É como se tudo fosse permitido em nome da substância original e a moralidade aparente escondesse a imoralidade da essência dessas relações.

Fonte: Beduka


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Semana Machado de Assis - Memórias Póstumas de Brás Cubas

 

“Memórias Póstumas de Brás Cubas”

Saiba porque esse romance é um dos mais celebrados da história da literatura brasileira



Ao criar um narrador que resolve contar sua vida depois de morto, Machado de Assis muda radicalmente o panorama da literatura brasileira em Memórias Póstumas de Brás Cubas, além de expor de forma irônica os privilégios da elite da época.

Narrador
A narração é feita em primeira pessoa e postumamente, ou seja, o narrador se autointitula um defunto-autor – um morto que resolveu escrever suas memórias. Assim, temos toda uma vida contada por alguém que não pertence mais ao mundo terrestre. Com esse procedimento, o narrador consegue ficar além de nosso julgamento terreno e, desse modo, pode contar as memórias da forma como melhor lhe convém.

Foco Narrativo
Com a narração em primeira pessoa, a história é contada partindo de um relato do narrador-observador e protagonista, que conduz o leitor tendo em vista sua visão de mundo, seus sentimentos e o que pensa da vida. Dessa maneira, as memórias de Brás Cubas nos permitirão ter acesso aos bastidores da sociedade carioca do século XIX.

Tempo
A obra é apoiada em dois tempos. Um é o tempo psicológico, do autor além-túmulo, que, desse modo, pode contar sua vida de maneira arbitrária, com digressões e manipulando os fatos à revelia, sem seguir uma ordem temporal linear. A morte, por exemplo, é contada antes do nascimento e dos fatos da vida.
No tempo cronológico, os acontecimentos obedecem a uma ordem lógica: infância, adolescência, ida para Coimbra, volta ao Brasil e morte. A estranheza da obra começa pelo título, que sugere as memórias narradas por um defunto. O próprio narrador, no início do livro, ressalta sua condição: trata-se de um defunto-autor, e não de um autor defunto. Isso consiste em afirmar seus méritos não como os de um grande escritor que morreu, mas de um morto que é capaz de escrever.
O pacto de verossimilhança sofre um choque aqui, pois os leitores da época, acostumados com a linearidade das obras (início, meio e fim), veem-se obrigados a situar-se nessa incomum situação.

Não-realizações
Publicado em 1881, o livro aborda as experiências de um filho abastado da elite brasileira do século XIX, Brás Cubas. Começa pela sua morte, descreve a cena do enterro, dos delírios antes de morrer, até retornar a sua infância, quando a narrativa segue de forma mais ou menos linear – interrompida apenas por comentários digressivos do narrador.
O romance não apresenta grandes feitos, não há um acontecimento significativo que se realize por completo. A obra termina, nas palavras do narrador, com um capítulo só de negativas. Brás Cubas não se casa; não consegue concluir o emplasto, medicamento que imaginara criar para conquistar a glória na sociedade; acaba se tornando deputado, mas seu desempenho é medíocre; e não tem filhos.
A força da obra está justamente nessas não-realizações, nesses detalhes. Os leitores ficam sempre à espera do desenlace que a narrativa parece prometer. Ao fim, o que permanece é o vazio da existência do protagonista. É preciso ficar atento para a maneira como os fatos são narrados. Tudo está mediado pela posição de classe do narrador, por sua ideologia. Assim, esse romance poderia ser conceituado como a história dos caprichos da elite brasileira do século XIX e seus desdobramentos, contexto do qual Brás Cubas é, metonimicamente, um representante.
O que está em jogo é se esses caprichos vão ou não ser realizados. Alguns exemplos: a hesitação ao começar a obra pelo fim ou pelo começo; comparar suas memórias às sagradas escrituras; desqualificar o leitor: dar-lhe um piparote, chamá-lo de ébrio; e o próprio fato de escrever após a morte. Se Brás Cubas teve uma vida repleta de caprichos, em virtude de sua posição de classe, é natural que, ao escrever suas memórias, o livro se componha desse mesmo jeito.
O mais importante não é a realização ou não dessas veleidades, mas o direito de tê-las, que está reservado apenas a uns poucos da sociedade da época. Veja-se o exemplo de Dona Plácida e do negro Prudêncio. Ambos são personagens secundários e trabalham para os grandes. A primeira nasceu para uma vida de sofrimentos: “Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado pro outro, na faina, adoecendo e sarando…”, descreve Brás. Além da vida de trabalhos e doenças e sem nenhum sabor, Dona Plácida serve ainda de álibi para que Brás e Virgília possam concretizar o amor adúltero numa casa alugada para isso.
Com Prudêncio, vê-se como a estrutura social se incorpora ao indivíduo. Ele fora escravo de Brás na infância e sofrera os espancamentos do senhor. Um dia, Brás Cubas o encontra, depois de alforriado, e o vê batendo num negro fugitivo. Depois de breve espanto, Brás pede para que pare com aquilo, no que é prontamente atendido por Prudêncio. O ex-escravo tinha passado a ser dono de escravo e, nessa condição, tratava outro ser humano como um animal. Sua única referência de como lidar com a situação era essa, afinal era o modo como ele próprio havia sido tratado anteriormente. Prudêncio não hesita, porém, em atender ao pedido do ex-dono, com o qual não tinha mais nenhum tipo de dívida nem obrigação a cumprir.
Os personagens da obra são basicamente representantes da elite brasileira do século XIX. Há, no entanto, figuras de menor expressão social, pertencentes à escravidão ou à classe média, que têm significado relevante nas relações sociais entre as classes. Assim, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, além de seu enorme valor literário, funciona como instrumento de entendimento desse aspecto social de nossas classes, como se verá adiante nas caracterizações de Dona Plácida e do negro Prudêncio.
A sociedade da época se estruturava a partir de uma divisão nítida. Havia, de um lado, os donos de escravos, urbanos e rurais, que constituíam a classe mandante do país. Estão representados invariavelmente como políticos: ministros, senadores e deputados. De outro, a escravidão é a responsável direta pelo trabalho e pelo sustento da nação e, por assim dizer, das elites. No meio, há uma classe média formada por pequenos comerciantes, funcionários públicos e outros servidores, que são dependentes e agregados dos favores dos grandes privilegiados.

Comentário do professor
O prof. Roberto Juliano, do Cursinho da Poli, ressalta que “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é uma obra que revolucionou o romance brasileiro. De cunho realista, mas sem ter as características da crítica agressiva de outros escritores do Realismo (como Eça de Queirós em Portugal), a força da obra de Machado de Assis está na crítica sutil e na grande inteligência do autor. Ao contrário do já citado escritor português Eça de Queirós, que batia de frente com a burguesia, em Memórias Póstumas a crítica é feita focando a burguesia por dentro, ou seja, o escritor parte de um ponto de vista mais psicológico. Através disso, consegue-se fazer um combate ao Romantismo em sua essência através de personagens verossímeis que cabe ao leitor julgar e colocando-se em reflexão, por exemplo, a questão da ociosidade burguesa.
Além disso, o prof. Roberto chama a atenção para o fato de que com esta obra Machado de Assis revolucionou o formato do romance através da subversão de padrões do Romantismo. Se no romance é de praxe escrever uma dedicatória, por exemplo, ele o faz a um verme; ao verme que o corroeu. Outro ponto que pode ser citado como exemplo é a quantidade de capítulos do livro. Se era comum ter cerca de trinta capítulos em um romance, Machado de Assis faz um livro que ultrapassa cem capítulos. Porém, alguns deles são extremamente curtos ou são vazios. O aluno deve, então, ficar atento a estes aspectos formais e em como se faz uma crítica social na obra, finaliza o prof. Roberto.
Fonte: Guia do Estudante

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Livros de Vestibular - Parte 3 - A Relíquia

 

“A Relíquia” – Resumo e Análise do livro de Eça de Queirós

Entenda o enredo e os principais aspectos da obra



A Relíquia trata-se de uma obra que associa à narrativa de viagem um olhar bem-humorado sobre a condição de adaptação humana, em seus interesses de posse e em suas ilusões sociais e afetivas, por meio de negociações íntimas, por vezes conflitivas, entre o sacrifício e a recompensa. Do mesmo modo, o autor desenvolve as reflexões do protagonista em um constante diálogo entre a verdade e a fantasia, como anuncia em uma famosa epígrafe editada junto ao título: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.

Romance realista de 1887 publicado na cidade do Porto, em Portugal, A RELÍQUIA chegou para o leitor brasileiro por meio de folhetins publicados na Gazeta de Notícias, periódico que circulou no Rio de Janeiro, de 1875 a 1942. Em seu formato atual está distribuído em cinco capítulos, antecedidos por um prólogo explicativo do narrador-personagem. Carrega todas as características do Realismo de um Eça de Queirós severo e sarcástico, em relação aos moldes sociais determinados por valores católicos, em seu tempo.

FOCO NARRATIVO

O romance é narrado em primeira pessoa. Teodorico Raposo, o “Raposão”, assume a empreitada da escrita com o seguinte propósito, segundo afirma no prólogo: “decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro […], as memórias da minha vida” […] “Esta jornada à terra do Egito e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira; e bem desejaria que dela ficasse nas letras, para a posteridade, um “monumento airoso e maciço”.

TEMPO E ESPAÇO

As memórias de Teodorico Raposo se distribuem progressivamente, em um tempo psicológico que recupera os fatos de sua infância, com o pai; da adolescência, já órfão, sob os cuidados da tia; da juventude, em Lisboa, tendo passado pela faculdade de Coimbra e, depois, a empreender a longa viagem à Terra Santa, ambiente central da narrativa, onde se passa a maior parte das suas aventuras.

CONEXÕES

Ao criar um “narrador-autor” de suas memórias, um tanto cético, prepotente, orgulhoso de sua “carreira”, sem o peso do trabalho nas próprias costas, dado aos desejos mundanos e à boa vida burguesa, o leitor brasileiro logo o associará ao Brás Cubas, protagonista das “Memórias póstumas…”, obra maior do Realismo brasileiro, escrita por Machado de Assis, publicada em 1881.

ENREDO E TRAMA

A trama se desenvolve ao redor do conflito latente entre duas personalidades. A primeira, a poderosa Dona Maria do Patrocínio, também chamada D. Patrocínio das Neves, Tia Patrocínio e, com mais frequência, Titi. Excessiva na riqueza e na entrega aos ritos religiosos, chegando a ser, nas tintas de Eça de Queiroz, uma caricatura das devotas católicas das coisas da igreja. Do outro lado, seu sobrinho Teodorico Raposo, o Raposão, narrador de suas próprias aventuras, órfão logo cedo, entregue aos cuidados da tia, em Lisboa.

Primeiro é enviado a um colégio interno e, em seguida a Coimbra para seguir seus estudos. De volta à casa de Titi, em Lisboa, conhece Adélia, de quem se torna amante. Após ser traído e abandonado por ela, tenta, em vão, convencer sua tia, de quem já havia conquistado a confiança, a enviá-lo a Paris. Para Titi a cidade francesa era ambiente de intensa devassidão. Consegue, contudo, ser seu portador de intenções religiosas em peregrinação a Jerusalém. Apesar de rejeitar o destino, aceita a viagem, imaginando as possíveis aventuras amorosas nas cidades que conheceria ao longo do itinerário.

Trava amizade com Topsius, estudioso alemão, antropólogo e historiador, no início da viagem, em Malta. Em Alexandria conhece também a inglesa Miss Mary, “comerciante de luvas e flores de cera”, de quem se fará amante durante a curta, mas intensa estadia. É uma camisa de Miss Mary, por ela entregue como lembrança dos momentos íntimos do casal, que estará em um embrulho de papel sempre junto do narrador-personagem. Será esse embrulho, na volta a Lisboa, protagonista do desmascaramento do Raposão.

Ao chegarem à Palestina, Teodorico interessa-se apenas por uma vizinha de quarto, casada. Não consegue a aproximação desejada e, com o amigo historiador, buscará entretenimento em uma casa de dançarinas. Em ambiente descrito como repugnante, com mulheres pouco atraentes e hostis, também não conseguirá aplacar seus desejos mais físicos, mesmo tendo dispendido boa quantidade de dinheiro. Seguem para Jerusalém.

Em um primeiro momento, Teodorico se vê envolto na sequência de acontecimentos ligados à Pascoa cristã. Descreve sua efetiva participação nas sagradas cenas que culminam com a morte e ressurreição de Jesus. Apesar de detalhada, o narrador acaba por revelar que sua experiência não passara de um sonho.

Teodorico confirma em Jerusalém real, bem distante de suas oníricas imaginações, a expectativa que formara em Lisboa acerca da Terra Santa. Seu desinteresse só foi quebrado por um bilhar e, um pouco antes, pela descoberta de uma suposta árvore de espinhos, de onde teria saído o galho que forjara a verdadeira coroa de espinhos de Jesus crucificado. Estava ali a relíquia encomendada por Dona Patrocínio, certificada pelo amigo Topsius como lembrança muito original e que, finalmente, faria dele um herdeiro universal. Embrulhada em uma folha de papel pardo, contudo, confundido com o embrulho da camisa de Miss Mary, do qual, aliás, precisava se livrar antes de chegar à casa da tia, foi entregue de boa-fé, a uma pedinte já quando faziam o caminho de volta. E para completar o desastre, o embrulho da amante foi entregue à tia.

Expulso de casa (e da herança!), experimenta uma fase de redenção e passa a viver da venda de relíquias que, agora, depois de perceber que constituiriam desejada e valorosa mercadoria em Lisboa, principalmente porque chegara “fresquinho de Jerusalém”, ele mesmo fabricava. O negócio, apesar de próspero, entra em declínio com o passar do tempo. A tia falece e para Teodorico deixa em testamento apenas seu “óculo”.

Casou-se com a irmã do Cotrim, colega dos tempos do colégio interno que, afinal, o ajuda a se erguer para uma vida comum. Oferecera-lhe emprego e lhe apresentara a irmã. Torna-se pai, possui carruagem, recebe a comenda de Cristo, mas não deixará de pensar no revés provocado por não ter conseguido afirmar, àquela altura, na entrega da encomenda à tia, que a camisa pertencera a “Santa Maria Madalena”, por propícia coincidência das iniciais deixadas por Miss Mary no bilhete que acompanhava a “relíquia” das intimidades afetivas, no embrulho de papel.

ANÁLISE A PARTIR DAS PERSONAGENS

A mentira autêntica e a coroa de espinhos

Teodorico conduz uma alma jovem e vibrante, fascinado pelo amor que, oposto aos requintes das letras românticas, mostra-se carnal, instintivo, aguçado, mas estará sob os cuidados das carolas e inflexíveis regras de Dona Patrocínio. Com o desenrolar dos fios de um enredo em que lemos o olhar crítico do autor português, a denunciar as hipocrisias dos moralistas jogos de cena, lemos a astúcia de Raposão, rápido e cuidadoso a administrar seus movimentos para atender aos apelos de sua idade e, ao mesmo tempo, mostrar-se casto aos olhos de sua tutora. A esperar a morte breve da tia, todos os sacrifícios para ocultar seus verdadeiros desejos somam-se como um amoral e perverso investimento do protagonista.

Titi era o recato encarnado, Raposão, uma fera enjaulada em suas próprias interpretações de um devoto Teodorico. Titi era o olhar severo da censura aos amores e desejos da carne (que chamava de “relaxação”). Raposão era o impulso e o instinto. Titi era o sacrifício vestido de devoção. Raposão era a entrega à vida mais mundana, física e cotidiana. Ele busca a mentira autêntica, ela espera a coroa de espinhos. Reprimido, Teodorico Raposo entrega aos leitores suas estratégias, visões, conflitos de um flaneur oprimido e acanhado, como oprimida e acanhada era a própria Lisboa de Eça, quando comparada a Paris de Baudelaire.
Fonte: Guia do Estudante