quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Semana Coleção Vaga-Lume - O Escaravelho do Diabo

O Escaravelho do Diabo


"O Escaravelho do Diabo trata-se de um livro de história policial, em que assassinatos estranhos envolvem a trama. Os fatos acontecem na cidade de Vista Alegre. Pessoas inocentes são vítimas de um estranho assassino nomeado “Inseto”, que antes de matá-las, as envia um pequeno embrulho contendo um escaravelho. A aparência e o nome científico dos insetos alude à arma utilizada no assassinato. As vítimas têm algo em comum: são todas ruivas legítimas, com cabelos que lembram a cor do fogo e sardentas."

Resenha

Alberto é estudante de medicina, mora com os pais e com o irmão, que é morto com uma espada no peito enquanto dormia e pouco tempo depois de ter recebido um pacote com um escaravelho. Inconformado com a perda do irmão, Alberto decide investigar.

Após esse fato, outra morte acontece na pensão da pequena cidade do interior de São Paulo. A polícia acha que os assassinatos não tem nada em comum, mas depois do terceiro assassinato, ela se convence que três ruivos mortos depois de receberem um escaravelho não pode ser coincidência. A polícia decide não contar para a imprensa o que está acontecendo para não alarmar o assassino, mas todos os ruivos da cidades são avisados para ficarem atentos e se possível sair da região por precaução.

A polícia e Alberto não tem pista nenhuma sobre o assassino, qualquer pessoa pode ser ele. Mas Alberto desconfia que a chave para o mistério e o assassino estão relacionados com a pensão da senhora Cora O’Shea. Alberto não vai sossegar e desistir da busca até descobrir quem matou seu irmão.

A história é um romance policial bem leve. O início do livro pode ser um pouquinho difícil pela narrativa um pouco antiga, mas logo você se costuma e a leitura flui facilmente por suas páginas.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Semana Pedro Bandeira - A Marca de uma Lágrima

A Marca de uma Lágrima


A história

Em A Marca de uma Lágrima, Isabel tem 14 anos. Ela se acha feia, gorda e, por isso, vive se colocando para baixo. Seu pior inimigo é o espelho, pois ele aponta exatamente cada um de seus “pontos fracos”.

Convidada para a festa de aniversário de Cristiano, um primo que não via há anos, Isabel resolve chamar Rosana, sua melhor amiga, para ir com ela. Aproveitando que restava pouco tempo de férias, Rosana aceitou o convite rapidamente.

Ao chegarem lá, sentiram uma forte atração pelo aniversariante. Mas, como Isabel tem sérios problemas de autoestima, dá como perdida uma possível batalha pelo coração de Cristiano.

No primeiro dia de aula, Cristiano marca um encontro com Isabel no laboratório do colégio. Ela se enche de esperanças, porém, o encontro era para dizer que ele estava apaixonado por Rosana e que precisava da ajuda da “priminha”.

Cristiano sai primeiro do laboratório, deixando Isabel sozinha, arrasada. Alguém entra em seguida e ela se esconde. Estava tão triste, e o laboratório tão escuro, que não conseguiu ver quem era. Viu apenas que a pessoa mexeu em alguns frascos.

Talentosa com as palavras, Isabel acaba escrevendo lindas cartas de amor para ajudar o namoro de Rosana com Cristiano. Mesmo sofrendo, ela continua escrevendo as cartas por um bom tempo, chegando a marcar algumas com suas lágrimas.

Enquanto a tristeza toma conta de Isabel, um acontecimento vem conturbar ainda mais a sua vida: a morte da diretora da escola. Isabel se sente ameaçada e a ideia da morte começa a rondar seus pensamentos.

Conclusões

A marca de uma lágrima tem uma narrativa capaz de fazer qualquer pessoa suspirar profundamente. Pedro Bandeira escreve de forma simples, mas com intensidade em cada palavra. Ele conta uma história para jovens, como se estivesse entre eles.

O ponto alto do livro é quando se inicia o mistério acerca da morte da diretora. O suspense, na dose certa, trouxe agilidade ao livro e é suficiente para te deixar intrigado e curioso.

O livro traz ainda algumas ilustrações que nos dão pistas do que vamos encontrar a cada capítulo.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Semana Pedro Bandeira - A Droga do Amor

A Droga do Amor



A História

Em A Droga do Amor, Magrí, a única garota do grupo, está em Nova Iorque para participar do Campeonato Mundial de Ginástica Olímpica e nem imagina que o clima anda pesado entre seus amigos no Brasil. Miguel, Calú e Crânio estão apaixonados por ela e acabam brigando feio durante uma reunião no forro do vestiário do Colégio Elite, o esconderijo oficial dos Karas.

Sem entender o que estava acontecendo, Chumbinho, o mais novo do grupo, manda um telegrama para Magrí explicando toda aquela situação desagradável. A amizade fala mais alto do que o sonho de ganhar uma medalha, então ela finge uma lesão para voltar ao Brasil imediatamente.

No mesmo voo estava o cientista americano de um conhecido laboratório multinacional. O mundo estava esperançoso pela cura para a praga do século. Esse cientista desembarcaria em São Paulo para realizar os últimos testes do soro experimental que um jornalista criativo apelidou de Droga do Amor. Caso desse certo, aquela droga libertaria realmente o amor da morte.

Tudo começa a dar errado quando ocorre uma confusão no aeroporto após o desembarque. Dona Iolanda, a professora de ginástica de Magrí, é atingida por um tiro e cai inconsciente. O cientista americano é sequestrado e a bolsa que continha a Droga do Amor é roubada. A cura para os amantes ficava cada vez mais distante.

Mesmo com todos os conflitos internos, Os Karas decidem não ficar de braços cruzados e retomam o grupo para solucionar mais um mistério. Havia algo muito maior em jogo.

Conclusões

Quase dez anos depois da primeira aventura dos Karas, Pedro Bandeira escreveu a continuação da história a partir de uma sugestão recebida por carta. O autor não apenas apostou na ideia como dedicou essa obra à leitora que a enviou. Que moral, hein?

O cenário é de crise entre os cinco amigos. Quem é apegado aos personagens principais, também sofrerá junto com eles quando vir aquela sólida amizade desmoronar. E tudo isso por causa de... AMOR!

É muito irônico que um sentimento tão lindo fosse responsável pela maior briga da história dos Karas até aqui, sendo que o grupo já enfrentou tantas batalhas e seguiu firme. Com isso, Pedro Bandeira também mostrou como seus personagens são revestidos de humanidade. Sensível, o autor fez outro gol de placa ao retratar os conflitos do universo jovem, mas sem abrir mão das aventuras que são o ponto alto da série.

A Droga do Amor dialoga um pouco com o primeiro volume da série (A Droga da Obediência). A ideia de “ressuscitar” o vilão, Doutor Q.I, serviu para colocar mais lenha na fogueira. O clima de mistério e tensão permaneceu no mesmo nível das obras anteriores, bem como a ousadia e a inteligência do grupo de jovens investigadores.

Também é notória a mudança de comportamento do detetive Andrade. Antes, ele sempre ficava com um pé atrás e interferia muito nos passos dos Karas. Agora, mesmo ainda demonstrando sua preocupação com a segurança dos garotos, ele já os deixa mais à vontade durante as investigações. Andrade acabou virando mais o “pai” do grupo, do que propriamente um detetive.

Nesse livro, o crime só acontece no Brasil porque os vilões acreditavam que sairiam impunes, subestimando totalmente a polícia brasileira. Nos fazendo pensar a respeito do senso comum de que as coisas aqui não funcionam e de como isso reflete na visão que os outros acabam tendo do nosso país. "Uma terra sem leis?"

Para encerrar, destaca-se outro ponto bem interessante que está presente na nota do autor, portanto, a dica é que fiquem bastante atentos durante a leitura e não ignorem essa parte final. Uma sacada brilhante.
Fonte: Mergulhando na Leitura

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Semana Pedro Bandeira - A Droga da Obediência

A Droga da Obediência



A Droga da Obediência é uma história que se passa no Colégio Elite, situado na cidade de São Paulo, era especial. A organização daquele colégio era invejável, porque tudo que era decidido dentro da escola envolvia não apenas os professores, mas os alunos também.

O representante dos alunos era Miguel, garoto inteligente e esperto, mas que escondia um segredo que apenas ele e mais três amigos, Calú, Crânio e Magrí conheciam: eles eram os Karas. O grupo dos Karas se reunia sempre que havia algum problema a ser resolvido. Calú era mestre na arte de representar, Crânio era uma das mentes mais brilhantes e inteligentes da escola e Magrí uma excelente atleta.

Naquele dia, se reuniram no esconderijo para discutir sobre o que estava acontecendo nos últimos meses. Alunos de várias escolas estavam sendo sequestrados e eles temiam que o Colégio Elite fosse o próximo. Enquanto discutiam, um barulho os interrompeu, assustando-os, pois ninguém mais sabia da existência daquele local, apenas os Karas. Da entrada do esconderijo surgiu Chumbinho, que revelou ao grupo que os observava há um tempo e queria fazer parte dele. Sem conseguir evitar que ele continuasse no local, aceitaram Chumbinho no grupo e continuaram a reunião. O objetivo era descobrir quem estava cometendo aqueles crimes e evitar que acontecesse o mesmo no Colégio Elite.

Cada um dos Karas tinha uma pista para seguir e assim começaram a reunir todas as informações possíveis para descobrir quem estava por trás dos sequestros. Porém, mal sabiam os Karas que naquele momento Chumbinho estava sendo sequestrado pelos bandidos. Induzido a tomar uma pílula, Chumbinho fingiu experimentar a droga para que pudesse ser levado e tentar descobrir onde estavam os alunos sequestrados.

Descobriu que a droga que estava sendo dada a ele também era dada a todos os alunos levados. Essa era a Droga da Obediência, que deixava todos que a consumiam sem reação, sem vontade própria, apenas obedecendo os comandos de qualquer pessoa.

Mesmo estando preso dentro do laboratório onde o Doutor Q.I. realizava experiências com os alunos sequestrados e sob o efeito da droga da obediência, Chumbinho conseguiu se comunicar com os Karas para dar novas pistas de onde encontrar todos que foram sequestrados. O que eles não contavam era com um pequeno deslize que cometeram, que deixou todos à mercê do Doutor Q.I. e da droga da obediência.

Conclusões

Esse livro da série Os Karas foi escrito por Pedro Bandeira em 1984 para o público adolescente. Mesmo sendo destinado ao público jovem, o livro envolve o leitor com toda a trama e desfecho da história fazendo com que o texto seja atraente até para o leitor adulto. Está longe de ser um conto de fadas, mas também não é uma história de terror.

A escrita é leve e bem desenvolvida. É muito fácil se envolver com os personagens e pelo texto ser dinâmico é possível ler sem se sentir desestimulado a continuar a leitura. É um livro bem pequeno, com 190 páginas, mas a história é cheia de reviravoltas e com suspense.

O livro traz uma reflexão sobre a obediência. Será que de fato é melhor que os adolescentes sejam máquinas que apenas obedecem e não tenham opinião própria ou sejam capazes de decidir por si mesmos o que fazer em suas vidas, apenas para que passem a ouvir mais os adultos e deixem de ser tão desobedientes? Para alguns essa seria uma solução fácil e eficaz de controlar comportamentos agressivos dos adolescentes, mas impossibilitaria que eles vivam a própria vida.

É claro que seria uma completa loucura desenvolver e aplicar uma droga da obediência, mas o que a história quis transmitir é exatamente a importância dos jovens terem opinião própria e desenvolverem seu senso crítico. Somente um louco como o Doutor Q.I. poderia encarar a droga da obediência como uma solução viável para resolver o “mau comportamento” dos jovens. Mas será que hoje não temos essa droga já aplicada em nossa sociedade? Não através de uma droga, mas por outro meio? Fica essa pergunta como uma forma de reflexão.
Fonte: Sala Literária

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Semana Drummond - Claro enigma

Livro Claro enigma



Claro enigma é o quinto livro de poesias do escritor Carlos Drummond de Andrade e foi lançado em 1951 pela editora José Olympio. A publicação reúne 42 poemas dos mais variados temas.

A célebre composição A máquina do mundo - eleito o melhor poema do século XX da literatura brasileira - é a penúltima criação presente no livro.

Resumo

Pode-se dizer que Claro enigma é um livro marcado por um certo desencanto, Drummond dava sinais, ao longo dos versos, da exaustão do seu engajamento político e do cansaço após os anos de militância.

Ao longo dos poemas, que tratam dos mais diversos temas, fica evidente, por exemplo, a dissolução de uma ideologia motivadora. As linhas iniciais de Dissolução, poema que inaugura a antologia, já marcam o tom do livro:

Escurecem e não me seduz
tatear sequer uma lâmpada.
Pois que aprouve ao dia findar,
aceito a noite.

E com ela aceito que brote
uma ordem outra de seres
e coisas não figuradas.
Braços cruzados.

Por outro lado, se o lado social do poeta perde fôlego, o aspecto introspectivo, melancólico e filosófico ganha força total. Drummond propõe um mergulho em seu interior e vai vasculhar assuntos preciosos como a sua origem, a força do amor e o poder da memória.

Muitos críticos, como Viviana Bosi (da USP), consideram que Claro enigma é o mais importante livro de poesia escrito em língua portuguesa do século 20.

Nessa publicação, Drummond volta a investir em formatos clássicos - assim como a sua Geração de 45 - como, por exemplo, o soneto. Alguns dos trabalhos reunidos no livro são composições formais que obedecem a rima e a métrica.

O poema Oficina irritada é um exemplar desse retorno as formas fixas:


Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrara: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

Em pesquisa encomendada pelo jornal Folha de S.Paulo entre escritores e críticos literários, o poema A máquina do mundo, o penúltimo presente em Claro enigma, foi eleito o melhor poema brasileiro do século XX. 

Contexto histórico

Dois eventos históricos importantes marcam especialmente o período de composição de Claro Enigma.

O mundo assistia a Guerra Fria, que teve início em 1947 (com o fim da segunda guerra mundial) e só veio a terminar em 1991 (com o fim da União Soviética).

Foi também um período marcado pelas consequências da bomba atômica, atirada em Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945.

Sobre a estrutura do livro

Lançado em 1951 pela editora José Olympio, o livro de Drummond é dividido em seis capítulos que carregam números variáveis de poemas, são eles:

I - Entre lobo e cão (18 poemas)

II - Notícias amorosas (7 poemas)

III - O menino e os homens (4 poemas)

IV - Selo de minas (5 poemas)

V - Os lábios cerrados (6 poemas)

VI - A máquina do mundo (2 poemas)

Primeira edição de Claro enigma


A epígrafe inicial do livro é a seguinte frase atribuída ao filósofo francês Paul Valéry:

Les événements m'ennuient.

A tradução para o português seria: Os acontecimentos me entediam.

A frase que é utilizada como abertura do livro já denuncia o sentimento de desengano, melancolia e desencanto que prevalece ao longo das poesias apresentadas. Parece que neste livro Drummond percebe a sua pequenez e a sua incapacidade de intervir no mundo, o avesso da atitude que apresentava em outros livros (como o profundamente engajado A rosa do povo, de 1945, que tematizava a guerra na Europa e a ditadura brasileira).

Claro enigma é caracterizado por uma apatia social e histórica, nele vemos um poema mais amargo do que o habitual na lírica de Drummond.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Semana Drummond - José

Poema E agora, José?



O poema José de Carlos Drummond de Andrade foi publicado originalmente em 1942, na coletânea Poesias. Ilustra o sentimento de solidão e abandono do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de que está perdido na vida, sem saber que caminho tomar.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Análise e interpretação do poema

Na composição, o poeta assume influências modernistas, como verso livre, ausência de um padrão métrico nos versos e uso de linguagem popular e cenários cotidianos.

Primeira estrofe

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Começa por colocar uma questão que se repete ao longo de todo o poema, se tornando uma espécie de refrão e assumindo cada vez mais força: "E agora, José?". Agora, que os bons momentos terminaram, que "a festa acabou", "a luz apagou", "o povo sumiu", o que resta? O que fazer?

Esta indagação é o mote e o motor do poema, a procura de um caminho, de um sentido possível. José, um nome muito comum na língua portuguesa, pode ser entendido como um sujeito coletivo, metonímia de um povo. Quando o autor repete a questão, e logo depois substitui "José" por "você", podemos assumir que está se dirigindo ao leitor, como se todos nós fossemos também o interlocutor.

É um homem banal, "que é sem nome", mas "faz versos", "ama, protesta", existe e resiste na sua vida trivial. Ao mencionar que este homem é também um poeta, Drummond abre a possibilidade de identificarmos José com o próprio autor. Coloca também um questionamento muito em voga na época: para que serve a poesia ou a palavra escrita num tempo de guerra, miséria e destruição?

Segunda estrofe

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

Reforça a ideia de vazio, de ausência e carência de tudo: está sem "mulher", "discurso" e "carinho". Também refere que já não pode "beber", "fumar" e "cuspir", como se seus instintos e comportamentos estivessem sendo vigiados e tolhidos, como se não tivesse liberdade para fazer aquilo que tem vontade.

Repete que "a noite esfriou", numa nota disfórica, e acrescenta que "o dia não veio", como também não veio "o bonde", "o riso" e "a utopia". Todos os eventuais escapes, todas as possibilidades de contornar o desespero e a realidade não chegaram, nem mesmo o sonho, nem mesmo a esperança de um recomeço. Tudo "acabou", "fugiu", "mofou", como se o tempo deteriorasse todas as coisas boas.

Terceira estrofe

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência, 
seu ódio — e agora? 

Lista aquilo que é imaterial, próprio do sujeito ("sua doce palavra", "seu instante de febre", "sua gula e jejum", "sua incoerência", "seu ódio") e, em oposição direta, aquilo que é material e palpável ("sua biblioteca", "sua lavra de ouro", "seu terno de vidro"). Nada permaneceu, nada restou, sobrou apenas a pergunta incansável: "E agora, José?".

Quarta estrofe

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

O sujeito lírico não sabe como agir, não encontra solução face ao desencantamento com a vida, como se torna visível nos versos "Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta". José não tem propósito, saída, lugar no mundo.

Não existe nem mesmo a possibilidade da morte como último recurso - "quer morrer no mar, / mas o mar secou" - ideia que é reforçada mais adiante. José é obrigado a viver.

Com os versos "quer ir para Minas, / Minas não há mais", o autor cria outro indício da possível identificação entre José e Drummond, pois Minas é a sua cidade natal. Já não é possível voltar ao local de origem, Minas da sua infância já não é igual, não existe mais. Nem o passado é um refúgio.

Quinta estrofe

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Coloca hipóteses, através de formas verbais no pretérito imperfeito do subjuntivo, de possíveis escapatórias ou distrações ( "gritasse", "gemesse", "tocasse a valsa vienense", "morresse") que nunca se concretizam, são interrompidas, ficam em suspenso, o que é marcado pelo uso das reticências.

Mais uma vez, é destacada a ideia de que nem mesmo a morte é uma resolução plausível, nos versos: "Mas você não morre / Você é duro, José!". O reconhecimento da própria força, a resiliência e a capacidade de sobreviver parecem fazer parte da natureza deste sujeito, para quem desistir da vida não pode ser opção.

Sexta estrofe

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

É evidente o seu isolamento total ("Sozinho no escuro / Qual bicho-do-mato"), " sem teogonia" (não há Deus, não existe fé nem auxílio divino), "sem parede nua / para se encostar" (sem o apoio de nada nem de ninguém), "sem cavalo preto / que fuja a galope" (sem nenhum meio de fugir da situação em que se encontra).

Ainda assim, "você marcha, José!". O poema termina com uma nova questão: "José, para onde?". O autor explicita a noção de que este indivíduo segue em frente, mesmo sem saber com que objetivo ou em que direção, apenas podendo contar consigo mesmo, com o seu próprio corpo.

O verbo "marchar", uma das últimas imagens que Drummond imprime no poema, parece ser muito significativo na própria composição, pelo movimento repetitivo, quase automático. José é um homem preso à sua rotina, às suas obrigações, afogado em questões existenciais que o angustiam. Faz parte da máquina, das engrenagens do sistema, tem que continuar suas ações cotidianas, como um soldado nas suas batalhas diárias.

Mesmo assim, e perante uma mundividência pessimista, de vazio existencial, os versos finais do poema podem surgir como um vestígio de luz, uma réstia de esperança ou, pelo menos, de força: José não sabe para onde vai, qual o seu destino ou lugar no mundo, mas "marcha", segue, sobrevive, resiste.

Contexto histórico: Segunda Guerra Mundial e Estado Novo

Para compreender o poema na sua plenitude é essencial termos em vista o contexto histórico no qual Drummond viveu e escreveu. Em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial, o Brasil também tinha entrado num regime ditatorial, o Estado Novo de Getúlio Vargas.

O clima era de medo, repressão política, incerteza perante o futuro. O espírito da época transparece, conferindo preocupações políticas ao poema e expressando as inquietações cotidianas do povo brasileiro. Também as condições de trabalho precárias, a modernização das indústrias e a necessidade de migrar para as metrópoles tornavam a vida do brasileiro comum numa luta constante.

Carlos Drummond de Andrade e o Modernismo Brasileiro

O Modernismo brasileiro, que surgiu durante a Semana de Arte Moderna de 1922, foi um movimento cultural que pretendia quebrar os padrões e modelos clássicos e eurocêntricos, heranças do colonialismo. Na poesia, queria abolir as normas que restringiam a liberdade criativa do autor: as formas poéticas mais convencionais, o uso de rimas, o sistema métrico dos versos ou os temas considerados, até então, líricos.

A proposta era abandonar o pedantismo e os artifícios poéticos da época, adotando uma linguagem mais corrente e abordando temas da realidade brasileira, como modo de valorizar a cultura e a identidade nacional.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. Autor de obras literárias de vários gêneros (conto, crônica, história infantil e poesia), é considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX.

Integrou a segunda geração modernista (1930 - 1945) que abraçou as influências dos poetas anteriores, e se focou largamente nos problemas sociopolíticos do país e do mundo: desigualdades, guerras, ditaduras, surgimento da bomba atômica. A poética do autor também revela um forte questionamento existencial, pensando no propósito da vida humana e no lugar do homem no mundo, como podemos ver no poema em análise.

Em 1942, data de publicação do poema, Drummond estava de acordo com o espírito da época, produzindo uma poesia política que expressava as dificuldades diárias do brasileiro comum e as suas dúvidas e angústias, assim como a solidão do homem do interior perdido na cidade grande.

Drummond morreu no Rio de Janeiro, dia 17 de agosto de 1987, na sequência de um infarto do miocárdio, deixando um vasto legado literário.
Fonte: Cultura Genial

Semana Drummond - Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade

Retrato de Carlos Drummond de Andrade


Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro de 1902 — 17 de agosto de 1987) é um dos maiores nomes da literatura brasileira, sendo apontado como o maior poeta nacional do século XX.

Membro da segunda geração do modernismo brasileiro, Drummond teve um enorme impacto no nosso panorama literário, com uma obra poética que quebrou as tradições das escolas anteriores.

Focados nas questões sociopolíticas da época mas também nas experiências e emoções do indivíduo, os seus poemas se caracterizam por terem uma linguagem acessível e abordarem temas do cotidiano, abandonando preocupações formais antigas, como a rima.

Poema Quadrilha

Quadrilha é um poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1930, na sua primeira obra Alguma Poesia. Trata-se de uma célebre composição que fala sobre as dificuldades e os desencontros do sentimento amoroso.

Assim como em outros poemas do autor, aqui o que está em jogo é a solidão do sujeito no mundo e a sua dificuldade em estabelecer laços com aqueles que o rodeiam.



Poema Quadrilha

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."


Escute o poema declamado pelo próprio autor:



Análise do poema Quadrilha

Carlos Drummond de Andrade foi um dos poetas que integraram a segunda geração do modernismo brasileiro. Quadrilha, como outras composições do autor, incorpora algumas características do movimento: o verso livre, as formas populares, as temáticas do cotidiano e linguagem coloquial.

A princípio, este parece ser um poema de tom quase infantil que narra paixões adolescentes. O seu desfecho, no entanto, remete para a vida adulta e suas vicissitudes.

Primeira metade

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém."

Os primeiros três versos do poema apresentam várias paixões não correspondidas. Todos os indivíduos, menos Lili, amavam sem serem amados de volta.

Desde o começo, podemos perceber que a confusão de sentimentos e os desencontros sucessivos marcam a história que o sujeito está narrando. Fica evidente a ideia de que o amor não é fácil de achar e muito menos de se concretizar.

Segunda metade

"João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

Nos quatro versos restantes, ficamos conhecendo o destino dos personagens que foram apresentados acima. Descobrimos que uns partiram e outros morreram.

Todos parecem ter ficado sozinhos ou deixado escapar o amor, seguindo seus destinos em diferentes direções. Do grupo, a única que se casou, afinal, foi Lili ("que não amava ninguém").

A referência ao seu marido surge de forma bastante impessoal, sem um nome próprio. "J. Pinto Fernandes" aparenta ser uma designação comercial, que identifica um negócio ou uma empresa, não uma pessoa.

Assim, o uso do termo pode insinuar que existe um relacionamento distante, ou até de interesse, entre o casal. De qualquer forma, o poema sublinha a imprevisibilidade da vida e do próprio sentimento amoroso.

Com humor e também com alguma tristeza, o poema reflete sobre os desafios que os indivíduos encontram nas vivências das suas paixões e que diminuem as possibilidades de encontrar um relacionamento feliz.

Interpretação e significado do poema Quadrilha

O título do poema parece ser uma referência à dança que virou tradição nas festas juninas brasileiras. Metaforizado pela quadrilha, o amor surge como uma dança onde os pares estão trocados e os sentimentos não são correspondidos.

Quase todos estão apaixonados e são alvo da adoração de alguém, mas as linhas parecem estar cruzadas e nenhum relacionamento cresce ou se concretiza.

Com uma perspectiva bastante pessimista, o sujeito poético retrata o amor como algo absurdo, uma espécie de jogo de sorte que apenas alguns têm a oportunidade de vencer.

De forma simples e usando exemplos concretos, do cotidiano, a composição ilustra o desespero do sujeito, e daqueles que os rodeiam, para quem o amor verdadeiro parece ser praticamente impossível.
Fonte: Cultura Genial











sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Semana Sertaneja - Morte e Vida Severina

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto 



Morte e Vida Severina é um dos poemas mais longos da literatura brasileira e traz, de uma maneira crua e, ainda assim, emocionante a trajetória de um retirante nordestino para fugir da seca e da morte.

Resumo

O poema se inicia com a apresentação do herói Severino, que conta sua trajetória pelas margens do rio Capibaribe até a capital pernambucana, Recife, a fim de alcançar uma vida melhor.

Num primeiro momento, o herói encontra dois homens carregando um defunto, chamado Severino, que teria sido morto a tiros por causa de terra.

Mais adiante, se depara com um grupo de pessoas rezando em torno de um morto, também de nome Severino. Seguindo seu trajeto, ele encontra uma senhora, dona de uma casa boa e aparentemente abastada.

Com ela, Severino tenta algum trabalho como lavrador. Entretanto, a única profissão que tem futuro naquela região é a que lida com a morte.

À medida que Severino vai encurtando a distância do litoral, ele percebe que a vegetação aumenta e que a terra é mais fofa. Contudo, a morte ainda marca presença. No caminho, encontra um cemitério onde acontece o funeral de um lavrador.

O rio retorna à vida; as árvores crescem e florescem; as folhas caem mais livres. É assim que o cenário vai se apresentando conforme Severino se aproxima de Recife.

Chegando na capital, ele escuta a conversa de dois coveiros. Percebe, então, que embora a temática da morte pela seca não exista mais, agora, a morte ocorre de outras formas. No mangue, para os retirantes que sofrem com inundações, miséria e marginalização, muitas vezes o suicídio é a única saída.

É aí que Severino se dá conta de que, como os outros retirantes do sertão que percorreram a mesma trajetória, a vida não abrandaria na capital. No cais, o lavrador cogita tirar a própria vida.

Conhece nesse momento José, trabalhador do mangue, e com ele conversa sobre a pobreza na capital e no sertão e sobre a morte e também sobre a vida.

A conversa é interrompida por uma mulher que comunica o nascimento do filho de José. Os vizinhos trazem presentes singelos para a nova vida que começa. Duas ciganas fazem previsões sobre o futuro do menino: trabalhador, no mangue ou na indústria e autor de uma vida simples.

Depois das previsões, os vizinhos começam a falar do menino recém-nascido: pequeno, magro, mas saudável – pronto para enfrentar o trabalho e seu destino.

E é assim que termina o percurso de Severino: antes tão cercado pela morte, agora o que o cerca é a vida severina.

Análise

Agora, para perceber o que este poema representa nas entrelinhas, é preciso destrinchá-lo para uma análise mais profunda.

Forma

A obra tem como subtítulo “Auto de Natal pernambucano”. Um auto é um subgênero da literatura dramática que surgiu na Espanha medieval.

Era uma forma frequentemente usada na Idade Média pelo clero com a finalidade de doutrinação e evangelização. Já que a intenção era, justamente, encaminhar as mensagens da Igreja às grandes massas, os autos medievais tinham caráter popular, linguagem mais objetiva e presença de cantos.

Em Morte e Vida Severina, a temática da religiosidade aparece no final, com o nascimento do filho de José, clara referência ao nascimento de Jesus – quando os cristãos comemoram o Natal.

Além disso, a forma da obra de João Cabral de Melo Neto faz alusão à forma dos antigos autos: divisão por partes, cada uma com uma breve apresentação do seu conteúdo; predominam as redondilhas maiores, versos com sete sílabas poéticas.

Afinal, quem é Severino?

Severino, nessa obra, não é apenas um nome. No título, o nome próprio ganha função de adjetivo e traz uma qualidade para a morte e para a vida.

No decorrer do poema, Severino é o nome de todos os retirantes que buscam uma vida mais branda na capital. Também é aquele que não consegue alcançar esse objetivo e é abraçado pela morte no meio do caminho.

Severino lavrador, finado Severino, Severinos de Maria. Essa universalização do nome induz o leitor a compreender que todos são os mesmos trabalhadores em busca da mesma vida e rodeados pelas mesmas dificuldades.

O próprio herói aborda isso no começo do poema, ao se apresentar com “Somos muitos Severinos,/iguais em tudo na vida”.

A palavra severina também pode fazer alusão ao adjetivo “severa”, ou seja, rígida, dura, exigente.

Morte Severina

A presença da morte persegue Severino em sua jornada. Desde a primeira parte, ele se apresenta explicando o que é a morte Severina: “a morte de que se morre/de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte/de fome um pouco por dia”.

A morte, na obra, pode ser “morrida” e “matada”. Morrida de fome ou de doença, matada de emboscada. Inclusive, o defunto que Severino encontra na segunda parte da obra morreu a tiros, por disputa de terras.

A morte é tão presente que ela rende frutos. As profissões que mais trazem riquezas são aquelas rodeadas por ela. Os funerais são muitos no sertão, mas o cenário não muda na capital.

É assim que a morte vem antes da vida na obra-prima de João Cabral de Melo Neto. Para muitos retirantes que circulam pela obra, a morte pode ser a maior riqueza.

Vida Severina

Com o nascimento do filho de José, nos momentos finais do auto, surge a grande epifania da obra. Sempre fugindo da morte, Severino descobre que ela, na verdade, sempre estará lá.

O que resta é viver essa vida, também Severina, dura, rígida, exigente da mesma forma que era no sertão, mas de maneiras diferentes. Quem antes fugia da seca e das balas, agora foge da miséria e da vontade de “saltar da ponte e da vida”.

Assim, com o nascimento – com o primeiro respiro de um menino na vida Severina – o poema termina com uma dose singela de otimismo.

Impacto social

Por trás de toda a beleza da obra, é muito clara a denúncia que ela carrega nos versos.

Primeiramente, a questão agrária é presente desde o começo. Seca, disputa por terras, falta de oportunidades em terras inférteis, fome… Essa denúncia também é extremamente evidente no funeral de um lavrador.

Nessa parte, os amigos do finado bradam os seguintes versos:


“Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
— Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca".

Nesse trecho, percebe-se que a cova em que um defunto é enterrado é a sua maior e melhor porção de terra. É onde ele se encontrará mais “ancho”, ou seja, mais largo e abastado. Ainda, é uma terrada dada, uma recompensa. Diante de tudo o que lhe fora negado em vida, não é permitido que o defunto reclame.

É preciso contentar-se com o pouco, adequar-se aos empecilhos e às mazelas que a terra traz à tona. Lavra-se pedra, planta-se a morte e, quando ela chega, aceita-se finalmente a terra dada, sua cova.

Para além disso, a miséria, de bens e de espírito, é outro fator denunciado nessa grande obra. No mangue, onde a vida poderia abrandar, as pessoas trabalham por migalhas e se rendem ao suicídio.

A pobreza material é notável na alusão ao nascimento de Jesus, que na obra é representado pelo filho do trabalhador José. Em vez do ouro, do incenso e da mirra, presentes dados ao recém-nascido na história bíblica, o bebê de Morte e Vida Severina recebe dos vizinhos presentes singelos e símbolos de uma vida difícil e miserável.

Caranguejos para se alimentar, jornal para se cobrir, água, boneco de barro, cajus, mangas… todos introduzidos pelos vizinhos com a frase “Minha pobreza tal é”.

Celebra-se uma vida em meio a tanta morte com o pouco que se tem, e é esse o último e também o primeiro suspiro de esperança.

Filme e outras adaptações

Por ser um poema tão rico em detalhes, algumas adaptações foram produzidas. Seja em forma de filme, animação ou até música, a trajetória de Severino já é conhecida por muitos brasileiros.

Filme – Morte e Vida Severina


Lançado em 1977 e dirigido por Zelito Viana, esse filme ilustra com bastante fidelidade a história de Severino, que é interpretado por José Dumont.

Animação


Essa animação incrível traz o poema completo rodeado de muitos detalhes visuais que, às vezes, não reparamos na primeira leitura. Vale muito a pena.
Fonte: Todo Estudo

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Semana Sertaneja - Vidas Secas

“Vidas secas” – Graciliano Ramos
Saiba mais sobre um dos maiores expoentes da segunda fase modernista



Vidas Secas”, romance publicado em 1938, retrata a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca. A obra pertence à segunda fase modernista, conhecida como regionalista, e é qualificada como uma das mais bem-sucedidas criações da época.

O estilo seco de Graciliano Ramos, que se expressa principalmente por meio do uso econômico dos adjetivos, parece transmitir a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as pessoas que ali estão.

A estética da seca

“Vidas Secas” é um dos maiores expoentes da segunda fase modernista, a do regionalismo. O diferencial desse livro para os demais da época é o apuro técnico do autor. Graciliano Ramos, ao explorar a temática regionalista, utiliza vários expedientes formais – discurso indireto livre, narrativa não-linear, nomes dos personagens – que confirmam literariamente a denúncia das mazelas sociais.

O livro consegue desde o título mostrar a desumanização que a seca promove nos personagens, cuja expressão verbal é tão estéril quanto o solo castigado da região. A miséria causada pela seca, como elemento natural, soma-se à miséria imposta pela influência social, representada pela exploração dos ricos proprietários da região.

Os retirantes, como o próprio nome indica, estão alijados da possibilidade de continuar a viver no espaço que ocupavam. São, portanto, obrigados a retirar-se para outros lugares. Uma das implicações dessa vida nômade dos sertanejos é a fragmentação temporal e espacial.

Graciliano Ramos conseguiu captar essa fragmentação na estrutura de Vidas Secas ao utilizar um método de composição que rompia com a linearidade temporal, costumeira nos romances do século XIX.

A proposital falta de linearidade, ou seja, de capítulos que se ligam temporalmente, por relações de causa e de consequência, dá aos 13 capítulos de Vidas Secas uma autonomia que permite, até mesmo, a leitura de cada um de forma independente.

Narrador

A escolha do foco narrativo em terceira pessoa é emblemática, uma vez que esse é o único livro em que Graciliano Ramos utilizou tal recurso. Trata-se, na verdade, de uma necessidade da narrativa, para que fosse mantida a verossimilhança da obra. Por causa da paupérrima articulação verbal dos personagens, reflexo das adversidades naturais e sociais que os afligem, nenhum parece capacitado a assumir o posto de narrador.

O autor utilizou também o discurso indireto livre, forma híbrida em que as falas dos personagens se mesclam ao discurso do narrador em terceira pessoa. Essa foi a solução para que a voz dos marginalizados pudesse participar da narração sem que tivessem de arcar com a responsabilidade de conduzir de forma integral a narrativa.

Espaço

A narrativa é ambientada no sertão, região marcada pelas chuvas escassas e irregulares. Essa falta de chuva – somada a uma política de descaso do governo com os investimentos sociais – transforma a paisagem em ambiente inóspito e hostil.

Inverno, na região, é o nome dado à época de chuvas, em que a esperança sertaneja floresce. O sonho de uma existência menos árida e miserável esboça-se no horizonte e dura até as chuvas cessarem e a seca retornar implacável. No romance, essa esperança aparece no capítulo “Inverno”, em que Fabiano alimenta a expectativa de uma vida melhor, mais digna.

O retorno à visão marcada pela falta de perspectivas recomeça com o fim das chuvas, com o fim da esperança. Na obra, pode-se apontar, também, para dois recortes espaciais: o ambiente rural e o urbano. A relevância desse recorte se deve às sensações de adequação ou inadequação dos personagens em um ou outro espaço.

Fabiano consegue, apesar da miséria presente, dominar o ambiente rural. Incapaz de se comunicar, o personagem, desempenhando a solitária função de vaqueiro, não sente tanto as consequências de seu laconismo. Além disso, conhece as técnicas de sua profissão, o que lhe dá uma sensação de utilidade e permite que goze até de certa dignidade. A passagem em que seu filho o admira ao vê-lo trabalhando deixa claro isso. Na cidade, porém, Fabiano vivencia, a cada nova experiência, o sentimento de inadequação. Os capítulos “Festa” e “Cadeia” ilustram bem essa sensação.

Tempo

Além da falta de linearidade do tempo, em “Vidas Secas” há nítida valorização do tempo psicológico, em detrimento do cronológico. Essa opção do narrador de ocultar os marcadores temporais tem como principal consequência o distanciamento dos personagens da ordenação civilizada do tempo.

Dessa forma, nota-se que a ausência de uma marcação cronológica temporal serve, enquanto elemento estrutural, como mais uma forma de evidenciar a exclusão dos personagens. Por outro lado, a valorização do tempo psicológico na narrativa faz com que as angústias dos personagens fiquem mais próximas do leitor, que as percebe com muito mais intensidade.

Comentário do Professor

A professora de Literatura do Cursinho do XI Ausonia Reda Luppi frisa que “Vidas Secas” é um romance cíclico. São 13 capítulos independentes que contam a retirada de uma família. Inicia-se com uma mudança e termina com a fuga.

A família é composta pelo pai – Fabiano – que quase não fala, não sabe que é branco e não sabe ler nem escrever. Sinhá Vitória, mulata esperta que sabia fazer contas com os grãos, Menino mais velho que queria saber ler e queria o significado da palavra Inferno. Menino mais novo, queria ser um vaqueiro como o pai. Cadela Baleia, a mais humana das personagens e um papagaio que não falava, só latia porque era o único som que escutava.

Segundo a professora, o vestibular pode cobrar a hierarquia apresentada no livro: como por exemplo, o que representa o Soldado Amarelo e a linguagem do Tomás da bolandeira, a quem Fabiano tanto admirava. Além disso, pode ser perguntado sobre o grau de miserabilidade dessa família: a cadela chegando ao nível humano e o humano descendo à condição de animal. Esta família vaga pela caatinga tentando chegar em algum lugar, mas podem estar perdidos, andando em círculo.
Fonte: Guia do Estudante

O Livro Vidas Secas também está disponível em filme pelo YouTube



quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Semana Sertaneja - A Bagaceira

A Bagaceira - de José Américo de Almeida



A Bagaceira, publicada em 1928, é a obra introdutora do romance regionalista no país. A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram mal-vistos nos brejos. E o nome de brejeiro cruelmente pejorativo.

O enredo do romance trata das questões do êxodo, os horrores gerados pela seca, além da visão brutal e autoritária do senhor de engenho, representando a velha oligarquia. A Bagaceira tem intenção crítica social, descambando, às vezes, para o panfletário, para o enfático e demagógico. Para o autor, o romance procura confrontar, em termos de relações humanas e de contrastes sociais, o homem do sertão e o homem do brejo (dos engenhos). Aproximando o sertanejo do brejeiro, na paisagem nordestina, José Américo de Almeida condiciona os elementos dramáticos aos ciclos periódicos da seca, os quais delimitam a própria existência do sertanejo.

Sob iluminação diferente, são postos em confronto, em A Bagaceira, os nordestinos do brejo e os do sertão. Brejeiros e sertanejos, submissão e liberdade, eram examinados com uma visão realista, se bem que, no registro das virtudes sertanejas possa notar-se, vez por outra, certo favorecimento (não intencional).

O título desse romance denomina o local em que se juntam, no engenho, os bagaços da cana. Figuradamente, pode indicar um objeto sem importância, ou ainda, “gente miserável”. Todos esses significados se podem mobilizar no entendimento de A Bagaceira, romance de ardor e violência, desavenças familiares, flagelações da seca.

O autor que, antes, estreara vitoriosamente no ensaio, deixa transparecer aprofundado conhecimento do ambiente e do homem paraibano, anotando pormenores, acentuando os traços mais definidores, integrado na paisagem e na estrutura social cheia de injustiças.

O tempo é entre 1898 e 1915, os dois períodos de seca. Tangidos pelo sol implacável, Valentim Pereira, sua filha Soledade e o afilhado Pirunga abandonam a fazenda do Bondó, na zona do sertão. Vão para as regiões dos engenhos, no rejo, onde encontram acolhida no engenho Marzagão, de propriedade de Dagoberto Marçau, cuja mulher falecera por ocasião do nascimento do único filho, Lúcio. Passando as férias no engenho, Lúcio conhece Soledade por quem se apaixona. Lúcio retorna à academia e quando retorna em férias para a companhia do pai, toma conhecimento de que Valentim Pereira se encontra preso por ter assassinado o feitor Manuel Broca, suposto sedutor e amante de Soledade. Lúcio, já advogado, resolve defender Valentim e informa o pai de sua intenção de casar-se com Soledade. Dagoberto não aceita a decisão do filho. E então tudo é esclarecido: Soledade é prima de Lúcio, e Dagoberto foi quem realmente a seduziu. Pirunga, tomando conhecimento dos fatos, comunica ao padrinho (Valentim) e este lhe pede, sob juramento, velar pelo senhor do engenho (Dagoberto), até que ele possa executar o seu “dever”: matar o verdadeiro sedutor de sua filha. Em seguida, Soledade e Dagoberto, acompanhados por Pirunga, deixam o engenho e se dirigem para a fazenda do Bondó. Cavalgando pelos tabuleiros da fazenda, Pirunga provoca a morte do senhor do engenho Marzagão, herdado por Lúcio, com a morte do pai. Em 1915, por outro período de seca, Soledade, já com a beleza destruída pelo tempo, vai ao encontro de Lúcio, para lhe entregar o filho, fruto do seu amor com Dagoberto.

O relato abre o ciclo do romance de 1930, entre outras razões por sua força de denúncia dos horrores gerados pela seca.

É digno de nota o prefácio que vale tanto ou mais do que próprio texto narrativo. Destaque para o espanto do escritor face às mazelas: “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã.”

Na narrativa há um choque de três visões que correspondem a três processos sócio-culturais distintos:
  • Visão rústica dos sertanejos, com seu sentido ético arcaico.
  • Visão brutal e autoritária do senhor de engenho, representando a velha oligarquia.
  • Visão civilizada (moderna, urbana) de Lúcio, traduzindo um novo comportamento de fundo burguês e que logo seria autorizado pela Revolução de 30.

É digno de nota o projeto modernizador do personagem Lúcio ao assumir o comando do engenho: alfabetização dos filhos dos trabalhadores, melhores condições de habitação, etc. Ou seja, aquilo que Getúlio Vargas proporia nos anos seguintes como alternativa para o país.

O livro apresenta uma mistura de linguagem tradicional – dominada por um tom desagradavelmente sentencioso – com um gosto modernista por elipses e imagens soltas, e ainda pelo uso de algumas expressões coloquiais ou regionais. Na obra a linguagem do narrador faz esforço para não se afastar em demasia da dos personagens, dialetal, folclórica.

Personagens

Dagoberto Marçau – Proprietário do engenho Marzagão, simboliza a prepotência, contrapondo-se à fraqueza dos trabalhadores da bagaceira. Considera-se “dono ” da justiça e seu código é simples: “O que está na terra é da terra”. Se ele é o senhor da terra, tudo que nela dá é da terra (ou seja, dele próprio). “Se ele é o senhor da terra, tudo que nela se encontra lhe pertence, até os próprios homens que trabalham no engenho. Assim pensa e assim age. Seduz Soledade, vendo na sertaneja semelhança com sua ex-mulher.

Lúcio – Humano, idealista, sonhador, apaixona-se por Soledade, com quem mantém um romance puro. Não compartilha as idéias de seu pai, Dagoberto Marçau, para quem “hoje em dia não se guarda mais na cabeça: só se deve guardar nas algibeiras”. Acreditava que se podia desmontar a estrutura anacrônica do engenho: “Quanta energia mal empregada na desorientação dos processos agrícolas!”

A falta de método acarretava uma precariedade responsável pelos apertos da população misérrima. A gleba inesgotável era aviltada por essa prostração econômica. “A mediania do senhor rural e a ralé faminta”.

Soledade – Filha de Valentim Pereira, representa a beleza agreste do sertão. Aos olhos de Lúcio, a sertaneja. “não correspondia pela harmonia dos caracteres às exigências do seu sentimento do tipo humano. Mas, não sabia por que, achava-lhe um sainete novo na feminilidade indefinível. As linhas físicas não seriam tão puras. Mas o todo picante tinha o sabor esquisito que se requintava em certa desproporção dos contornos e, notadamente, no centro petulante dos olhos originais.”… “Era o tipo modelar de uma raça selecionada , sem mescla, na mais sadia consangüinidade.”

A presença da sertaneja no engenho colocará uma barreira ainda maior entre Dagoberto e Lúcio. Por Soledade Valentim se torna assassino e Pirunga causa a morte do senhor de engenho.

Valentim Pereira – Representa o sertão: destemido, arrojado e altivo. Como bom sertanejo pune pela honra de uma mulher, mata o feitor Manuel Broca, apontado como sedutor de sua filha. Mas a “idéia fixa da honra sertaneja” vai além: a cicatriz que lhe marcava o rosto era resultado de uma briga mortal com um amigo, que desonrara uma moça, neta de um “velhinho”, de quem o tempo quebrara as forças. O diálogo entre Valentim e Brandão de Batalaia (assim se chamava o “velhinho”) é bem ilustrativo: “Que é que vossamecê manda? Ele respondeu que só queria era morrer. Eu ajuntei: E por que não quer matar?…”

Pirunga – Filho de criação de Valentim Pereira, a quem tributa lealdade. Ama Soledade, mas seu amor não encontra receptividade. Assim como Valentim, simboliza o sertão: valente, intrépido, altivo… Por ocasião da festa no rancho, vai em defesa de Latomia: enfrentando a polícia.
Fonte: Marijane

Leia também A Bagaceira em HQ

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Semana Indígena - Iracema

“Iracema” – Resumo e análise do livro de José de Alencar
Escrito em prosa poética, esse romance é um dos principais representantes da vertente indianista do movimento romântico



A narrativa de Iracema estrutura-se em torno da história do amor de Martim por Iracema.
Diferentemente do que ocorre em outros romances de José de Alencar, como em O Guarani, o enredo de Iracema é aberto a interpretações. A relação entre Martim e Iracema significa a união entre o branco colonizador e o índio, entre a cultura europeia, civilizada, e os valores indígenas, apresentados como naturalmente bons. É uma espécie de mito de fundação da identidade brasileira.

Ainda menino, Alencar fez uma viagem pelo sertão. A experiência dessa viagem de garoto seria constantemente evocada pelo futuro escritor em seus romances, com imagens e impressões da exuberante natureza brasileira. Alguns espaços merecem destaque por ser palco de importantes acontecimentos desse romance: o campo dos tabajaras, onde fica a taba do pajé Araquém, pai de Iracema; a taba de Jacaúna, na terra dos potiguaras (ou pitiguaras); a praia em que vivem Martim e Iracema e onde nasce Moacir.

IMAGENS E METÁFORAS


Uma das grandes habilidades de Alencar está em representar o pensamento selvagem por meio de uma linguagem cheia de imagens e de metáforas. Sabe-se que as sociedades que não avançaram no terreno da lógica argumentativa (que pressupõe noções científicas básicas) têm em contrapartida grande riqueza no plano mitológico. Elas se valem dos mitos e das histórias para explicar o mundo.
O pensamento do selvagem é imagético e, por isso, está muito próximo da poesia. Vê-se nesse ponto como o autor soube unir forma e conteúdo. De outro modo seria difícil caracterizar a linguagem do índio sem prejuízo da verossimilhança.

BASE HISTÓRICA

A narrativa inicia-se em 1608, quando Martim Soares Moreno é indicado para regularizar a colonização da região que mais tarde seria conhecida como Ceará.

José de Alencar era leitor assíduo de Walter Scott, criador do romance histórico, e foi influenciado por esse escritor. Como em vários romances de Alencar, Iracema mistura ficção e documento, com enredo que toma como base um argumento histórico. Essa junção se deve também ao projeto de criação de uma literatura nacional, no qual Alencar e os demais escritores românticos do seu tempo estavam fortemente empenhados.

Ainda quanto ao aspecto histórico, que o autor levou em conta ao compor a obra, ressalte-se que os índios potiguaras (habitantes do litoral) eram aliados dos portugueses, enquanto os tabajaras (habitantes das serras cearenses) eram aliados dos franceses.

ENREDO

A primeira cena antecipa o fim do livro, o que reforça a unidade da obra: Martim e Moacir deixam a costa do Ceará em uma embarcação, quando o vento lhes traz aos ouvidos o nome de Iracema.

No segundo capítulo, a narrativa retrocede no tempo até o nascimento de Iracema. A personagem é então apresentada ao leitor: “Virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira”. A índia é descrita como uma linda e excelente guerreira tabajara, “mais rápida que a ema selvagem”. Por isso mesmo, sua reação ao avistar o explorador Martim é desferir-lhe uma flechada certeira. Essa é também uma referência à flecha de cupido, já que, desde o primeiro olhar trocado pelos personagens, se percebe o amor que floresce entre os dois.

Martim desiste de atacar a índia assim que põe os olhos nela. Iracema, por sua vez, parece ter atirado a flecha por puro reflexo, pois logo depois se arrepende do gesto e salva o estrangeiro, levando-o até sua aldeia.

Martim é recolhido à aldeia pelo pajé Araquém, pai de Iracema, e apresenta-se a ele como um aliado de seus inimigos potiguaras que se perdera durante uma caçada. O pajé o trata com grande hospitalidade e garante hospedagem, mulheres e a proteção de mil guerreiros.

Iracema oferece mulheres a Martim, que prontamente as recusa e revela sua paixão por ela. O amor de Martim é cristão, idealizado. O de Iracema também, mas por motivo diverso: ela guarda o segredo da jurema, por isso precisa manter se virgem. Esse é o estratagema que Alencar utiliza para transpor o amor romântico europeu às terras americanas. Uma índia, criada fora dos dogmas cristãos, não teria motivos para preservar sua virgindade.

AMOR PROIBIDO

As proibições reforçam ainda mais o amor entre a índia e o português. São as primeiras de muitas provações que tal união terá de enfrentar. Em linhas gerais, o romance estrutura-se no embate entre tudo o que une e o que separa os dois amantes.

Irapuã é o chefe guerreiro tabajara e funcionará, no esquema narrativo da obra, como um antagonista de Martim. Na primeira desavença entre os dois, o velho pajé Andira, irmão de Araquém, intervém em favor do estrangeiro. Iracema pergunta ao amado o motivo de sua tristeza e, percebendo que ele tinha saudade de seu povo, pergunta se uma noiva branca espera pelo seu guerreiro. “Ela não é mais doce do que Iracema”, responde Martim. Irapuã nutre amor não correspondido pela virgem e logo reconhece no português um inimigo mortal.

Iracema conduz Martim ao bosque sagrado, onde lhe ministra uma poção alucinógena. O guerreiro branco delira, e a índia adormece entre os seus braços.

Enquanto isso, Itapuã continua alimentando planos para se livrar do estrangeiro. O amor entre os protagonistas parece impossível de se concretizar, por isso Martim é coagido por Iracema a voltar para sua terra. Caubi, irmão de Iracema, acompanha-os. No caminho de volta, porém, são atacados por guerreiros liderados por Irapuã. Martim, Iracema e Caubi refugiam-se na taba do pajé Araquém, que usa de um truque para salvar o português da ira do chefe guerreiro.

Sucede-se o encontro amoroso entre Martim e Iracema, narrado delicadamente pelo autor. Martim está inconsciente por ter ingerido a bebida da jurema e a índia deita-se ao seu lado. A frase “Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras” é a sutil indicação de que a união amorosa se realizara.
Os acontecimentos que se seguem têm como pano de fundo a guerra entre potiguaras e tabajaras. Martim escapa de seus inimigos tabajaras e une-se aos vencedores potiguaras. Iracema, porém, sente-se profundamente triste pela morte dos entes queridos e não suporta viver na terra de seus inimigos.

O casal muda-se então para uma cabana afastada, localizada numa praia idílica. Com eles vai Poti, o grande amigo de Martim. Lá vivem um tempo de felicidade, culminando com a gravidez de Iracema e o batismo indígena de Martim, que recebe o nome de Coatiabo, ou “gente pintada”. Com o passar do tempo, contudo, o português se entristece por não poder dar vazão a seu espírito guerreiro e por estar com muita saudade de sua gente. A bela índia tabajara também se mostra cada vez mais triste.
Numa ocasião em que Martim e Poti saem para uma batalha, nasce o filho, Moacir. Quando os dois amigos voltam da guerra, encontram Iracema à beira da morte. O corpo da índia é enterrado aos pés de um coqueiro, em cujas folhas se pode ouvir um lamento. Daí vem o nome Ceará, canto de sua jandaia de estimação, uma ave que sempre a acompanhava.

CONCLUSÃO

Iracema, por amor a Martim, abandona família, povo, religião e deus. É uma clara referência à submissão do indígena ao colonizador português. Alguns dizem que o nome Iracema é também um anagrama de América.