sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Semana Sertaneja - Morte e Vida Severina

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto 



Morte e Vida Severina é um dos poemas mais longos da literatura brasileira e traz, de uma maneira crua e, ainda assim, emocionante a trajetória de um retirante nordestino para fugir da seca e da morte.

Resumo

O poema se inicia com a apresentação do herói Severino, que conta sua trajetória pelas margens do rio Capibaribe até a capital pernambucana, Recife, a fim de alcançar uma vida melhor.

Num primeiro momento, o herói encontra dois homens carregando um defunto, chamado Severino, que teria sido morto a tiros por causa de terra.

Mais adiante, se depara com um grupo de pessoas rezando em torno de um morto, também de nome Severino. Seguindo seu trajeto, ele encontra uma senhora, dona de uma casa boa e aparentemente abastada.

Com ela, Severino tenta algum trabalho como lavrador. Entretanto, a única profissão que tem futuro naquela região é a que lida com a morte.

À medida que Severino vai encurtando a distância do litoral, ele percebe que a vegetação aumenta e que a terra é mais fofa. Contudo, a morte ainda marca presença. No caminho, encontra um cemitério onde acontece o funeral de um lavrador.

O rio retorna à vida; as árvores crescem e florescem; as folhas caem mais livres. É assim que o cenário vai se apresentando conforme Severino se aproxima de Recife.

Chegando na capital, ele escuta a conversa de dois coveiros. Percebe, então, que embora a temática da morte pela seca não exista mais, agora, a morte ocorre de outras formas. No mangue, para os retirantes que sofrem com inundações, miséria e marginalização, muitas vezes o suicídio é a única saída.

É aí que Severino se dá conta de que, como os outros retirantes do sertão que percorreram a mesma trajetória, a vida não abrandaria na capital. No cais, o lavrador cogita tirar a própria vida.

Conhece nesse momento José, trabalhador do mangue, e com ele conversa sobre a pobreza na capital e no sertão e sobre a morte e também sobre a vida.

A conversa é interrompida por uma mulher que comunica o nascimento do filho de José. Os vizinhos trazem presentes singelos para a nova vida que começa. Duas ciganas fazem previsões sobre o futuro do menino: trabalhador, no mangue ou na indústria e autor de uma vida simples.

Depois das previsões, os vizinhos começam a falar do menino recém-nascido: pequeno, magro, mas saudável – pronto para enfrentar o trabalho e seu destino.

E é assim que termina o percurso de Severino: antes tão cercado pela morte, agora o que o cerca é a vida severina.

Análise

Agora, para perceber o que este poema representa nas entrelinhas, é preciso destrinchá-lo para uma análise mais profunda.

Forma

A obra tem como subtítulo “Auto de Natal pernambucano”. Um auto é um subgênero da literatura dramática que surgiu na Espanha medieval.

Era uma forma frequentemente usada na Idade Média pelo clero com a finalidade de doutrinação e evangelização. Já que a intenção era, justamente, encaminhar as mensagens da Igreja às grandes massas, os autos medievais tinham caráter popular, linguagem mais objetiva e presença de cantos.

Em Morte e Vida Severina, a temática da religiosidade aparece no final, com o nascimento do filho de José, clara referência ao nascimento de Jesus – quando os cristãos comemoram o Natal.

Além disso, a forma da obra de João Cabral de Melo Neto faz alusão à forma dos antigos autos: divisão por partes, cada uma com uma breve apresentação do seu conteúdo; predominam as redondilhas maiores, versos com sete sílabas poéticas.

Afinal, quem é Severino?

Severino, nessa obra, não é apenas um nome. No título, o nome próprio ganha função de adjetivo e traz uma qualidade para a morte e para a vida.

No decorrer do poema, Severino é o nome de todos os retirantes que buscam uma vida mais branda na capital. Também é aquele que não consegue alcançar esse objetivo e é abraçado pela morte no meio do caminho.

Severino lavrador, finado Severino, Severinos de Maria. Essa universalização do nome induz o leitor a compreender que todos são os mesmos trabalhadores em busca da mesma vida e rodeados pelas mesmas dificuldades.

O próprio herói aborda isso no começo do poema, ao se apresentar com “Somos muitos Severinos,/iguais em tudo na vida”.

A palavra severina também pode fazer alusão ao adjetivo “severa”, ou seja, rígida, dura, exigente.

Morte Severina

A presença da morte persegue Severino em sua jornada. Desde a primeira parte, ele se apresenta explicando o que é a morte Severina: “a morte de que se morre/de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte/de fome um pouco por dia”.

A morte, na obra, pode ser “morrida” e “matada”. Morrida de fome ou de doença, matada de emboscada. Inclusive, o defunto que Severino encontra na segunda parte da obra morreu a tiros, por disputa de terras.

A morte é tão presente que ela rende frutos. As profissões que mais trazem riquezas são aquelas rodeadas por ela. Os funerais são muitos no sertão, mas o cenário não muda na capital.

É assim que a morte vem antes da vida na obra-prima de João Cabral de Melo Neto. Para muitos retirantes que circulam pela obra, a morte pode ser a maior riqueza.

Vida Severina

Com o nascimento do filho de José, nos momentos finais do auto, surge a grande epifania da obra. Sempre fugindo da morte, Severino descobre que ela, na verdade, sempre estará lá.

O que resta é viver essa vida, também Severina, dura, rígida, exigente da mesma forma que era no sertão, mas de maneiras diferentes. Quem antes fugia da seca e das balas, agora foge da miséria e da vontade de “saltar da ponte e da vida”.

Assim, com o nascimento – com o primeiro respiro de um menino na vida Severina – o poema termina com uma dose singela de otimismo.

Impacto social

Por trás de toda a beleza da obra, é muito clara a denúncia que ela carrega nos versos.

Primeiramente, a questão agrária é presente desde o começo. Seca, disputa por terras, falta de oportunidades em terras inférteis, fome… Essa denúncia também é extremamente evidente no funeral de um lavrador.

Nessa parte, os amigos do finado bradam os seguintes versos:


“Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
— Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca".

Nesse trecho, percebe-se que a cova em que um defunto é enterrado é a sua maior e melhor porção de terra. É onde ele se encontrará mais “ancho”, ou seja, mais largo e abastado. Ainda, é uma terrada dada, uma recompensa. Diante de tudo o que lhe fora negado em vida, não é permitido que o defunto reclame.

É preciso contentar-se com o pouco, adequar-se aos empecilhos e às mazelas que a terra traz à tona. Lavra-se pedra, planta-se a morte e, quando ela chega, aceita-se finalmente a terra dada, sua cova.

Para além disso, a miséria, de bens e de espírito, é outro fator denunciado nessa grande obra. No mangue, onde a vida poderia abrandar, as pessoas trabalham por migalhas e se rendem ao suicídio.

A pobreza material é notável na alusão ao nascimento de Jesus, que na obra é representado pelo filho do trabalhador José. Em vez do ouro, do incenso e da mirra, presentes dados ao recém-nascido na história bíblica, o bebê de Morte e Vida Severina recebe dos vizinhos presentes singelos e símbolos de uma vida difícil e miserável.

Caranguejos para se alimentar, jornal para se cobrir, água, boneco de barro, cajus, mangas… todos introduzidos pelos vizinhos com a frase “Minha pobreza tal é”.

Celebra-se uma vida em meio a tanta morte com o pouco que se tem, e é esse o último e também o primeiro suspiro de esperança.

Filme e outras adaptações

Por ser um poema tão rico em detalhes, algumas adaptações foram produzidas. Seja em forma de filme, animação ou até música, a trajetória de Severino já é conhecida por muitos brasileiros.

Filme – Morte e Vida Severina


Lançado em 1977 e dirigido por Zelito Viana, esse filme ilustra com bastante fidelidade a história de Severino, que é interpretado por José Dumont.

Animação


Essa animação incrível traz o poema completo rodeado de muitos detalhes visuais que, às vezes, não reparamos na primeira leitura. Vale muito a pena.
Fonte: Todo Estudo

Um comentário: